Desigualdades sociais fazem aumentar risco de fractura da anca

Entre 2000 e 2010, a maioria dos países ocidentais viu diminuir o número de fracturas do colo do fémur nas mulheres idosas – um grave problema de saúde pública que pode ser evitado. Mas pelo menos em Portugal, esta melhoria não terá beneficiado por igual todas as classes sociais.

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A osteoporose, que surge com a idade, aumenta o risco de fracturar o colo do fémur sobretudo nas mulheres PAULO RICCA

As desigualdades sociais, exacerbadas pela crise económica mundial cujos efeitos começaram a fazer-se sentir já em 2007, tiveram um efeito nefasto imediato – mas só agora posto em evidência – na saúde óssea das mulheres idosas portuguesas das classes menos favorecidas, concluem três investigadoras portuguesas num estudo publicado na revista Journal of Epidemiology and Community Health.

Pode parecer um truísmo afirmar que as pessoas mais pobres são mais vulneráveis perante a doença. As autoras do estudo – Fátima Pina, Carla Oliveira e Sandra Alves, do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde (I3S) da Universidade do Porto – sublinham aliás esta realidade: “É sabido que os factores sócio-económicos determinam disparidades nos comportamentos relacionados com a saúde e na incidência de doenças e a mortalidade”, escrevem no seu artigo.

Contudo, no início da última década, diversos estudos revelaram pelo menos uma excepção a esta “regra”: na sequência de uma iniciativa internacional, na maioria dos países ocidentais, incluindo Portugal, o número de fracturas do colo do fémur (vulgo fractura da anca) nas mulheres idosas começou a estabilizar ou diminuir em todas as classes sociais.

As fracturas da anca devem-se ao alastramento da osteoporose, decorrente do substancial aumento da esperança de vida nos países mais desenvolvidos ao longo do século passado. A osteoporose surge com a idade e, como o seu nome indica, torna os ossos porosos, “rendilhados” – e portanto, mais propensos à quebra. E essa fragilidade óssea faz com que mesmo um traumatismo normalmente sem gravidade possa ter consequências desastrosas.

“As fracturas do fémur são uma consequência da osteoporose e a grande maioria é causada por impactos de pequena ou média energia, como por exemplo uma queda da cama, da cadeira, quedas por tropeções”, explicou ao PÚBLICO Fátima Pina, que liderou o estudo e é especialista da epidemiologia das doenças osteoarticulares. “A osteoporose é mais frequente nas mulheres do que nos homens porque as mulheres têm uma grande perda de massa óssea após a menopausa. Até aos 50-55 anos de idade, o risco de osteoporose é semelhante entre homens e mulheres, mas após a menopausa o risco aumenta muito entre as mulheres. Por terem mais osteoporose e também por terem maior propensão às quedas, as mulheres têm um risco de fracturas aproximadamente três vezes maior do que os homens.”

Ora, não só os custos financeiros da hospitalização e dos procedimentos cirúrgicos associados são enormes, como estas fracturas causam, primeiro uma perda de autonomia e de qualidade de vida e depois a uma mortalidade muito elevada, segundo Fátima Pina: 35% dos homens e 20% das mulheres morrem no ano que se segue a uma fractura do colo do fémur.

Mas o mais irónico disto tudo é que grande parte das fracturas da anca poderia ser prevenida: “As fracturas da anca [são] das causas mais evitáveis de incapacidade nos idosos”, lê-se ainda no artigo agora publicado.

Seja como for, na viragem do milénio, as projecções da evolução desta autêntica epidemia eram tão catastróficas que foi lançada a inciativa Década do Osso para a travar, explicou-nos ainda Fátima Pina. Entre outras acções, começou-se a administrar medicamentos contra a osteoporose e a sensibilizar a população idosa para a necessidade de aprender a evitar as quedas.

E de facto, os resultados não se fizeram esperar. Logo no início dos anos 2000, verificou-se um decréscimo das fracturas da anca na maioria dos mais de 60 países ocidentais que, como Portugal, tinham aderido à iniciativa. Aliás, Fátima Pina e colegas mostraram, já em 2013, num artigo publicado na revista Bone, que essa diminuição estava em parte associada ao aumento da venda de medicamentos contra a osteoporose.

Diferenças geográficas
Entretanto, em 2008, a equipa da investigadora também tinha descoberto que, em Portugal, entre 2000 e 2002 – ou seja, antes da melhoria associada ao recurso à medicação, que neste país começou em 2003 –, existia um padrão geográfico na incidência das fracturas da anca. Uma “desigualdade” flagrante que fazia com que certas regiões do país fossem muito mais vulneráveis do que outras à osteoporose. “Portugal até tem um baixo risco nesta matéria quando comparado com certos países do Norte”, disse-nos Fátima Pina, mas em certas regiões de Portugal, como o Algarve ou Trás-os-Montes, o risco revelava-se altíssimo. “E nós queríamos saber a origem dessas diferenças geográficas”, acrescenta. Tratar-se-ia de factores ambientais, de factores sociais, de factores genéticos? Estariam as estatísticas globais que mostravam, desde 2003, uma diminuição das fracturas da anca a mascarar situações desiguais conforme o local de residência das pessoas? As três autoras do actual estudo decidiram portanto “dissecar” o fenómeno em termos de classes sócio-económicas.

Para realizar o estudo, as investigadoras analisaram os casos de 96.905 pessoas com mais de 50 anos (77% de mulheres) constantes do Registo Nacional de Altas Hospitalares e que foram hospitalizadas, entre 2000 e 2010, devido a fracturas da anca causadas por impactos fracos ou moderados. E desta vez, tiveram em conta o local de residência das pessoas, à escala dos municípios de Portugal continental, distribuindo-os por três categorias: pobres, médios e ricos. As disparidades geográficas do impacto da iniciativa da Década do Osso surgiram logo.

“A vantagem do nosso estudo é que, ao desagregarmos por grupos sócio-económicos, percebemos padrões que ficam ‘escondidos’ quando se analisa a totalidade dos dados”, frisa Fátima Pina. “Por exemplo, já era sabido que as taxas de incidência de fracturas [da anca] apresentam uma tendência de decréscimo em vários países e em Portugal também se vinha a observar esse padrão, mas não se sabia que esse decréscimo não ocorre em todas as regiões.”

“Nós mostrámos [agora] que existem desigualdades acentuadas: quando analisamos [a evolução desta incidência nas várias] faixas etárias de acordo com o grupo sócio-económico, nas mulheres de áreas mais pobres não existe tendência de decréscimo e, pelo contrário, a partir de 2007, a tendência é de crescimento [do número de fracturas da anca].” Segundo Fátima Pina, este tipo de desigualdades também poderá vir a revelar-se noutros países se forem realizados estudos deste tipo, o que ainda não aconteceu.

O resultado talvez mais marcante desta análise por área de residência verificou-se entre as mulheres com 65 a 79 anos: nas regiões “ricas”, confirmaram-se os resultados obtidos a nível nacional. E mais: houve uma diminuição contínua das fracturas da anca, de 1,7% por ano, ao longo de todo o período 2000-2010, explicam as autoras. Mas nas regiões “médias”, verificou-se “uma tendência abrupta para diminuírem (4,7% por ano)” durante um curto período (2004-2007), “seguida de uma tendência para aumentarem (3,4% por ano)”, lê-se no artigo. E nas regiões “pobres”, não houve qualquer diminuição da incidência das fracturas da anca e “só foi observada uma tendência para aumentarem entre 2006 e 2010, com um incremento de 3,3% por ano”, escrevem ainda as cientistas.

“Não podemos afirmar com certeza que foi o abandono da medicação nos grupos mais pobres e mais velhos que fez com que estes grupos tivessem um aumento das fracturas do fémur, mas essa é uma hipótese válida, porque há uma mudança brusca na tendência nestes grupos", diz-nos Fátima Pina. “As taxas de incidência vinham a diminuir e, de repente, passaram a aumentar, por volta do ano 2007.”

E não foi nesse ano por acaso. “O ano 2007 marcou o início da crise económica mundial, que teve um impacto forte no país e na vida das pessoas”, argumenta a cientista, lembrando que foi em 2007 que começou a haver algumas reduções nos rendimentos em Portugal, nomeadamente “ligeiros cortes nas pensões das pessoas idosas”. Ora, como a prevenção da osteoporose não é vista como uma prioridade face a doenças como a hipertensão ou a diabetes, os medicamentos anti-osteoporose terão sido dos primeiros a ser abandonados pelas mulheres de menores recursos financeiros.

Mas por que é que o efeito da interrupção da medicação foi tão imediato? Não deveria ter demorado mais tempo a verificar-se um aumento visível das fracturas da anca? Não, responde-nos Fátima Pina, porque os medicamentos anti-osteoporose têm, justamente, efeitos imediatos – e basta uma interrupção do tratamento de três meses para cancelar os seus benefícios.

Contudo, a austeridade e a troika só chegaram a Portugal anos mais tarde. Será que a situação piorou ainda mais nitidamente desde então? A equipa está agora a analisar dados que vão até 2015, responde Fátima Pina. No entanto, ela acredita desde já que as disparidades terão piorado e se terão estendido a outros grupos populacionais. Os novos resultados deverão ser conhecidos daqui a uns meses.

Todavia, este estudo só responde parcialmente à questão da origem das diferenças regionais em termos de fracturas da anca evidenciado pelo estudo de 2008, que é o que motivou a equipa em primeiro lugar. “As desigualdades sócio-económicas explicam parte desse padrão geográfico, mas não explicam tudo” diz Fátima Pina, “e continuamos à procura de entender por que existem diferenças geográficas tão acentuadas em Portugal”.

Há de facto uma variável ambiental que poderá fornecer um substancial elemento de resposta, salienta: a composição da água. Não se trata da qualidade da água, mas sim da sua composição química natural, que, apesar de respeitar as normas de qualidade, varia conforme as regiões do país. “A composição química da água poderá explicar grande parte das diferenças geográficas”, diz Fátima Pina. “Alguns elementos da água estão associados ao risco de fracturas, porque ao longo da vida alguns minerais presentes na água e nos alimentos vão-se depositando nos ossos, tornando-os mais frágeis.”

A confirmar-se a relevância deste factor ambiental, poderá ser possível gerir melhor os esforços de combate à osteoporose – e as suas nefastas consequências.

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