Trump, populismo, Europa

O fenómeno Trump mostra bem que a crise é uma crise das democracias ocidentais representativas.

1. À medida que crescem as oportunidades de Donald Trump se tornar o candidato republicano às eleições presidenciais norte-americanas, confesso que o meu grau de preocupação e de receio aumenta exponencialmente. Trump representa o advento e o triunfo do mais puro e mais básico populismo e oportunismo políticos. O seu profundo desprezo pela igual dignidade de todos os seres humanos, o seu nacionalismo exacerbado e folclórico, a sua arrogância para com os restantes países (de que a ridicularização México é apenas o exemplo mais frisante), o simplismo e imediatismo das soluções que apresenta (designadamente, em sede militar) são de molde a fazer soar todas as campainhas de alerta, a tinir todos os sinos de alarme. Já não bastava o alinhamento de sectores substanciais do Partido Republicano com as posições retrógradas do Tea Party, só faltava agora que elas fossem veiculadas e lideradas por um carismático exótico e histriónico, produto típico das nossas sociedades mediáticas. Tudo em Trump é paradoxal: trata-se de um capitalista multimilionário que tem a sua grande base de apoio nas classes trabalhadoras; é um dos mais célebres membros da elite americana, muito liberal em matéria de costumes, que agora se converteu no candidato “anti-establishment”, professando um credo conservador de perfil evangélico (bem patente no apoio de Sarah Palin).

2. Como compreender este fenómeno e este paradoxo? Julgo que confluem aqui três causas fundamentais, de resto, profundamente entrelaçadas. A primeira é um cansaço enorme do eleitorado com a classe política, com os políticos e com a política. A segunda é a alta mediatização da política, que fez erodir os mecanismos de temperança e moderação da representação e aproximou as democracias hodiernas das clássicas democracias directas (e, consecutivamente, das “demagogias” no sentido aristotélico). Finalmente, é a percepção e sensação dos eleitores (que corresponde, aliás, à realidade) de que o seu voto perdeu peso e importância e, por isso, é preciso apostar em protagonistas que lhes prometam restaurar o efectivo valor do “seu” voto.

3. O fenómeno Trump é ainda relevante – muitíssimo relevante – porque desmente muitas das explicações que têm sido avançadas para o preocupante recrudescimento do populismo e até do nacionalismo na Europa. A explicação mais vezes adiantada – e curiosamente, cada vez mais em voga, nos comentadores nacionais e em bastantes responsáveis políticos, arvorados em neonacionalistas de ocasião – é o “fracasso colossal” da União Europeia e das suas políticas. A crise do euro e das chamadas dívidas soberanas, a crise dos refugiados e do controlo de fronteiras, a questão britânica, as derivas húngara e polaca, o caos grego, os secessionismos escocês e catalão, a impotência nas crises ucraniana, síria e líbia e a duplicidade do relacionamento da e com a Turquia mostram, entre muitas outras fracturas expostas e feridas abertas, uma séria paralisia e um impasse das instâncias europeias. Este impasse e esta incapacidade seriam a razão para um alheamento e um distanciamento cada vez maior dos eleitorados, para um refúgio no voto nos partidos radicais e extremistas (mais de direita, mas também de esquerda), para uma aposta em líderes carismáticos, de discurso simples e soluções imediatas. O sucesso do movimento “cinco estrelas” em Itália, a emergência segura de Le Pen em França, a subida meteórica de De Wilders na Holanda que já chegou aos 41% nas sondagens, a liderança dos Democratas Suecos na Suécia, o regresso pujante da eminência parda de Kaczinsky à Polónia, a resiliência de Orbán na Hungria, os sucessos de Tsipras e do Syriza na Grécia de 2015, o confisco dos refugiados aprovado na Dinamarca, a voz grossa de Iglesias e do Podemos no actual interregno espanhol, a subida à tona da Alternativa para a Alemanha nas eleições regionais que aí vêm, a força do UKIP no Reino Unido, agora fortalecido pela jogada de mais um exótico mediático de cabelo louro como Boris Johnson – tudo seria o resultado meridiano e automático da degenerescência da União e da sua rematada incapacidade para lidar com as crises que lhe caíram no colo. Populismo e nacionalismo exacerbado teriam uma só explicação – também ela, muito coerentemente, populista e nacionalista – a falência da Europa, das instâncias europeias, das políticas europeias…

4. Ora o que o fenómeno Trump desmente – e desmente fragorosamente – é que este advento do populismo e esta recuperação do nacionalismo tenham uma explicação essencialmente motivada no alegado ocaso do projecto europeu. Diga-se, em rigor e em abono da verdade, que as falhas europeias não se devem propriamente às instituições genuinamente europeias (Comissão, Parlamento, Tribunais). Devem-se, isso sim, às deficiências de funcionamento do Conselho e, designadamente do Conselho Europeu, em que estão directamente representados os Estados através dos governos nacionais. Os grandes responsáveis pela plissagem e derrapagem europeia são, por isso, ainda e sempre os governos nacionais e os Estados que chefiam (e não os políticos de Bruxelas ou terríveis e não escrutinados tecnocratas e eurocratas).

O fenómeno Trump, ao hiperbolizar o populismo nacionalista e revanchista nos Estados Unidos, mostra bem que a crise é uma crise das democracias ocidentais representativas. Democracias que, perante a cavalgada da interacção directa dos media e das redes sociais, não foram capazes de absorver e incorporar essa profunda revolução tecnológica. E mais: não foram capazes de conciliar a escala territorial do direito de voto com a rápida e progressiva desterritorialização da política. As causas do êxito e disseminação dos populismos e nacionalismos são várias e complexas. Mas querer fechar os olhos às grandes mudanças tectónicas de natureza estrutural das nossas democracias e querer blindar tudo no pequeno cubo da Europa é como querer voltar a meter o génio frenético na tranquila lamparina.

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