Muitos casos de crianças em perigo são ignorados aos primeiros sinais

Uma mulher está presa por suspeitas de homicídio qualificado das duas filhas, de 20 meses e quatro anos. Não só o Estado, também a comunidade e a família devem estar atentos aos indícios de risco. E nem sempre estão.

Foto
Polícia Marítima dará por terminadas neste domingo as operações de busca da menina de quatro anos desaparecida no Tejo Enric Vives-Rubio

Perante situações tão trágicas como a desta semana em que duas meninas levadas pela mãe perderam a vida no mar em Caxias, “é fácil apontar falhas” do sistema de protecção. Difícil será dotá-lo da capacidade de resposta para agir em tempo útil e salvar as crianças, diz uma jurista do Instituto de Apoio à Criança (IAC), Ana Perdigão. A explicação não passará tanto por falta de legislação: “O cenário legal é vasto”, e as leis de protecção foram revistas no ano passado.

A situação destas duas crianças, de “contornos tão complexos e profundos”, como diz a jurista, interpela não apenas o Estado, mas a comunidade e a família, considera também a psicóloga clinica Fernanda Salvaterra. “As pessoas esquecem-se: há o Estado mas também há a família. A família é o primeiro sistema, é o que está mais próximo das pessoas e tem obrigações. E a comunidade: todos os ecossistemas onde a família se movimenta devem dar o alerta.”

Uma explicação poderá passar pela falta de respostas céleres aos primeiros sinais de risco que, muitas vezes, não são logo percebidos – ou denunciados. As respostas específicas de saúde mental são escassas e estão longe das pessoas. Apresentam-se de tal forma demoradas e espaçadas no tempo que deixam escapar situações de perigo. Como pode a perturbação desta mãe não ter sido detectada a tempo?  questiona Ana Perdigão. 

Os serviços de saúde mental devem estar muito mais próximos das pessoas, considera também Fernanda Salvaterra. As respostas são deficitárias não só na saúde mental, mas também no acolhimento, diz a psicóloga. As consultas de psiquiatria devem ser marcadas aos primeiros sinais de perturbação, insiste. E isso não acontece. Muito poucos centros de saúde têm psicólogos e as consultas de psiquiatria nos hospitais não são marcadas com a urgência e a frequência exigidas por muitos dos casos que chegam às comissões de protecção ou ao IAC. 

“Em muitas das situações, é necessário acompanhamento psicológico das crianças, ou apoio psicológico à mãe ou ao pai, ou até um acompanhamento à família. Debatemo-nos com essa dificuldade de obtermos essas respostas em tempo útil”, acrescenta Fernanda Salvaterra, que exerce funções numa comissão de protecção de crianças e jovens. As soluções “não correspondem às necessidades de haver acompanhamento próximo, regular, semanal”.

“Os sinais têm de ser percebidos, logo de início, pelas instituições da infância e juventude, por todos os serviços da comunidade por onde passam as crianças: a escola, a creche, o centro de saúde, os hospitais, as associações juvenis”, reforça o procurador-geral adjunto do Tribunal da Relação do Porto, Francisco Maia Neto, com vasta experiência em processos de Família e Menores. “É normalmente neste primeiro patamar [de intervenção] que se colhem os indícios.”

Portugal assistiu, nos últimos anos, “a um apogeu destes casos". Desde 2012, "homicídios de filhos seguidos de suicídios foram muito mais comuns”, diz. “São coisas traumáticas. O que está em causa é se o sistema pode e deve preocupar-se com a identificação dos primeiros sinais de perigo. Houve situações mais graves do ponto de vista humano por motivos económicos e não houve um correspondente acompanhamento das organizações da primeira linha para detectar os sinais.”

Os gabinetes de apoio à criança e à família nas escolas, onde os mais novos partilham as suas rotinas com assistentes sociais ou psicólogos, é “um óptimo local para detectar situações que não correm bem”, sugere Ana Perdigão. As equipas não se têm mantido e, em muitos casos, não tem sido prestada a devida atenção às crianças.

As instituições precisam de técnicos. E os técnicos precisam de tempo para escutar as crianças, diz Ana Perdigão, ou para avaliar a situação de uma mãe. Para avaliar, encaminhar, sinalizar, reforça. “A necessidade da urgência das respostas agravou-se com a crise, também porque a crise instalada traz muitos mais problemas emocionais. A própria saúde mental das pessoas fica mais fragilizada. Um pai e uma mãe desempregados ficam muito mais expostos a tudo o que seja adverso. E mais facilmente chegam a estados de desespero.”

Para que situações como a das mortes de Caxias não se repitam, será preciso detectar os indícios “no sítio próprio, em tempo útil”, observa Francisco Maia Neto, que coordenou a comissão de revisão das leis de protecção. E isso não está a acontecer, considera. “Os sinais são fundamentais. É muito importante denunciar.”

Mesmo denunciando, podem surgir dúvidas. A mãe das meninas de Caxias está presa preventivamente, indiciada por dois crimes de homicídio qualificado, depois de o Ministério Público ter considerado que agiu com “especial censurabilidade ou perversidade”. Sobre o pai incidiam suspeitas de violência doméstica e abusos sexuais das duas filhas, que este nega e que a justiça investiga. As crianças presenciavam as violentas discussões do casal, reconhece o pai, alegando que a mulher lançou acusações sobre ele para obter vantagens no processo de regulação parental depois de um divórcio conturbado.

Os casos de regulação parental mais complicados envolvem, por vezes, acusações deste tipo, “nem sempre verdadeiras”, reconhece Fernanda Salvaterra. “Isso não quer dizer que não se deva tomar a devida atenção. Às vezes, o tribunal tem dificuldade em decidir, em saber onde está a verdade”, acrescenta. E aconselha cautela na forma como se fala de falsas denúncias. “Pode parecer que há sempre manipulação das situações, e não há. Há casos muito graves em que é preciso intervir de imediato, em que as pessoas se queixam com toda a legitimidade por se sentirem ameaçadas e por as crianças estarem em risco.”

Uma denúncia da PSP, a quem a mãe tinha apresentado queixa em Novembro, depois da separação, deu entrada na Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) da Amadora em Novembro passado. O caso foi remetido ao Ministério Público como de resto prevê a lei de protecção desde as alterações legislativas do ano passado, em caso de suspeitas de abuso sexual intrafamiliar, diz Francisco Maia Neto. Desde a alteração, as comissões deixaram de ter competência neste tipo de situações, uma vez que a sua intervenção depende da autorização dos pais. “São os casos em que o eventual abusador iria prestar consentimento. E isso não faz sentido”, aponta.

“A decisão da retirada das crianças, de uma forma geral, é sempre temida pelos técnicos, e sempre tomada nas situações-limite”, diz Fernanda Salvaterra, autora de uma tese de doutoramento sobre adopção e vinculação. “Embora sendo uma decisão extrema, deve ser tomada sempre que esteja em causa o bem-estar e o superior interesse da criança, quando ela está em perigo naquela família. Na noção de perigo inclui-se o risco de vida mas também o perigo para o seu desenvolvimento, tanto físico como emocional e psicológico.”

As situações de retirada aumentaram muito nos últimos meses, revela Fernanda Salvaterra. “Em mês e meio, até meados de Fevereiro, já tivemos [na CPCJ onde exerce funções] sete situações de retiradas da família. No ano inteiro de 2015 tivemos 32.” Só esta semana, a do desaparecimento e da morte das duas crianças em Caxias, a CPCJ onde Fernanda Salvaterra exerce funções recebeu oito situações de emergência noutras tantas famílias, envolvendo 14 crianças. As buscas para encontrar a menina de quatro anos que desapareceu continuam este domingo. E deverão terminar de vez ao final do dia.

Sugerir correcção
Comentar