Jibóia em transe

A Jibóia do transe oriental electrificado ganhou mundo e ganhou peso. Dançamos Masala de olhos abertos. Esta não é a Lisboa, São Paulo, Marrakech ou Oslo que conhecemos.

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Uma masala é combinação de especiarias utilizada na gastronomia indiana. Masala é o título do segundo álbum de Jibóia — ouvindo-o a analogia torna-se cristalina Luís Martins

O mundo está unido no transe de Jibóia. Ou melhor, no mundo que é a música de Jibóia, tudo é transe. Lisboa requebra como em casamento com Omar Souleyman como mestre-de-cerimónias, São Paulo tem caixinha a marcar ritmo de samba e Luanda não dispensa a dikanza, mas esqueçam e samba e esqueçam o semba, que a Jibóia não quer saber de purismos. Entrem por esta Oslo dentro e sintam o poder demoníaco do black-metal – sintam-no sugerido, que não há aqui lugar para betinhos aprumados como os Burzum. Aventurem-se pelos subterrâneos de Londres e entreguem-se à salvação através do kuduro da morte – palavra de Jibóia, que pode estar aqui para iludir os nossos sentidos, mas nunca para nos mentir.

Uma masala é uma combinação de especiarias utilizada na gastronomia indiana. Masala é o título do segundo álbum de Jibóia e, pelo descrito no primeiro parágrafo deste texto, a analogia torna-se cristalina. Badlav, o primeiro longa-duração, editado em 2014, foi gravado com Ana Miró (Sequin), e as suas quatro canções usavam o hindi para seguir, em formato livre, o ciclo de criação e destruição do Yuga da filosofia hindu. Na capa, Óscar Silva, o homem que dá vida à Jibóia, surgia com turbante. Fazia todo o sentido: na sua inesperada e fascinante música, que já conhecíamos do homónimo EP de estreia e dos concertos, ouviam-se escalas de música oriental (o Médio Oriente, a Índia) tocadas em guitarra alucinando de electricidade e fuzz distorcido, sons de órgão barato trabalhados para nos envolver com exuberância, caixa de ritmos e linhas de baixo criadas para que rodopiássemos como dervixes pagãos inebriados pelo som. Mas já nessa altura Jibóia não era apenas esse Oriente revisto e transformado por um músico português criado na Bobadela.

Gravado com Ricardo Martins (ex-baterista de Lobster, co-autor com Filho da Mãe do recente Tormenta) e produzido por Jonathan Saldanha (que, entre outras actividades, conhecemos dos magníficos HHY & The Macumbas), Masala nasceu para mostrar que há mais mundo em Jibóia. “Um dos objectivos do disco era descentralizar, porque já desde o início que as influências vão muito além do Médio Oriente. Digo mais rapidamente títulos de canções brasileiras ou africanas que tenho como referência do que turcas ou indianas”, esclarece Óscar Silva. Daí os títulos que compõem Masala: Ankara, São Paulo, Lisboa, Marrakech, Dubai, London, Luanda e Oslo. Sem preocupações de verosimilhança. “São locais mais imaginados que visitados. Não estive nem em metade delas”, confessa.

Masala não é o disco em que Jibóia se deslocou a paisagens mais ou menos distantes para que a sua música fosse contagiada por outros sons. “Não fomos lá para fazer as músicas. Fizémo-las e depois olhámos para o mapa e tentámos ir buscar qualquer coisa a vários sítios. Ouvimo-las e imaginámos onde podiam ter sido escritas”. A localização geográfica é, portanto, uma questão de pormenor – os excertos de voz, cantados por Óscar como se de um sample se tratasse, seguem as melodias de Selda, cantora turca, imitam o mais fielmente possível a gravação de um coro feminino etíope, entoam uma letra escrita por Ana Miró entre o russo e hindi, e não correspondem necessariamente a uma área no globo próxima.

Certo é que Jibóia continua a significar música onde electricidade muito rock’n’roll veste roupa psicadélica, música como fluxo contínuo que leva a que, nos concertos,  o público invente novas danças ou, de olhos fechados, crie a sua própria viagem mental. Em Masala, intensifica-se a experiência. Terão reparado que, ao descrever a génese deste mapa-mundo Jibóia, Óscar Silva utiliza o plural. Auto-diagnosticado perfeccionista que gosta de controlar todo o processo que conduz à música que cria, Óscar decidiu que, desta vez, não seria prejudicial ter outros a ajudar a definir o caminho a seguir.

Ricardo Martins, amigo de há muito, companheiro de banda nos Papaya, baterista extraordinário da cena independente portuguesa da última década, era escolha inevitável. “Tinha decidido há muito que queria fazer qualquer coisa com ele, mas quando comecei ele estava em Barcelona, onde estudou e viveu durante alguns anos”. Agora era o momento. “Depois de ter explorado o 'beat' [digital], queria virar-me para o ritmo analógico. A ideia era eu definir as bases rítmicas e o Ricardo complementá-las com a bateria, mas ele, felizmente, entusiasma-se logo a 500 por cento”.

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Luís Martins

Depois da conversa em que Óscar explicou o que pretendia, o duo enfiou-se num estúdio e tornou-se evidente que melhor mesmo seria esquecer a ideia original. “A parte rítmica ficou completamente a cargo dele e fomos construindo tudo a meias”. A música ganhou peso, tornou-se mais negra e mais densa, vagamente ameaçadora. Não por nos sentirmos em perigo, entenda-se, mas por haver ali um qualquer mistério por desvendar - ou talvez devamos mesmo sentir um leve arrepio. Nos concertos de Masala, Óscar não espera ver muito público de olhos fechados, como acontecia anteriormente quando subia a palco sozinho: “Agora tens que ter os olhos bem abertos, porque nunca se sabe se tens uma faca apontada às costas”.Se “Badlav” avançava da luz para a escuridão, os tons negros de “Masala” servem-lhe continuação adequada. “Não quer dizer que seja o fim do mundo. O mundo já acabou, a festa transportou-se para outro sítio qualquer, não identificado, e temos que ter cuidado”.

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O toque decisivo para que esse ambiente se construísse exactamente como pretendido – não como imaginado, como se perceberá – foi dado pelo homem escolhido para a produção, Jonathan Saldanha, da Soopa, colectivo multi-disciplinar sedeado no Porto, e fundador dos por hoje indispensáveis HHY & The Macumbas. Jonathan ouviu e ouviu atentamente, sem grandes interferências, enquanto Óscar e Ricardo gravavam. “Falava-nos em intensidades, em velocidades, mas não de coisas específicas, de solos de guitarra ou de um trombone que ficaria bem algures”, recorda Óscar. “Não fez pressão nenhuma em qualquer direcção, quis obter o bruto e depois pensar no que tinha e trabalhá-lo. Foi diferente do que estávamos à espera, mas para melhor”, confessa, enquanto recorda a imagem de Jonathan Saldanha “completamente em cima da mesa de mistura, por cima do João Brandão [dos Estúdios Sá da Bandeira, no Porto, onde o álbum foi gravado]” a lançar a sua feitiçaria sonora, técnica apuradíssima, sobre o material gravado.

Processo concluído, a Jibóia, esta nova Jibóia de “Masala”, estava preparada para se revelar. Reconhecemo-la imediatamente, tão rápido como percebemos que algo mudou. Tem mais mundo, cresceu e parece insaciável. Nada tememos. Dançamos em Ankara, em São Paulo, em Lisboa, Londres ou Luanda. De olhos abertos, dançamos. Olhamos para trás. Não temos nenhuma faca apontada às costa. Dançamos. Olhamos para trás. Dançamos. A Jibóia não nos irá trair. 

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