Os homens de coração de pedra que passaram Mr Khan do Paquistão para Portugal

Por serem estudantes ou professores, Mr Khan, Hassan e Gul Khan eram perseguidos pelos talibans. Não sabiam onde estavam quando foram deixados em Lisboa, de noite, com instruções para pedirem asilo no SEF ao amanhecer.

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"Viajámos por todos os meios: autocarro, camião, a caminhar de noite, no escuro, passando por vários países, sem sabermos onde estamos", diz Mr Khan Enric Vives-Rubio

Mr Khan: assim pede para ser tratado o jovem do Paquistão que deixou tudo para trás. “Ficas lá, és morto”, disseram-lhe. No beco em que se transformara a sua vida, tinha uma saída: a fuga. Portugal foi um acaso. Chegou exausto mas vivo, depois de ver a própria morte de frente, várias vezes, durante a longa jornada. No fim, foi deixado no escuro de um parque de Lisboa, na noite de 16 de Dezembro de 2015. Na mão, um papel com a morada do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) onde tentaria a sorte ao amanhecer. 

A voz confiante expõe, ainda incrédula, o que lhe aconteceu desde que saiu de Peshawar em Outubro. O olhar triste mas vivo não se resigna. No centro de acolhimento do Conselho Português para os Refugiados (CPR), na Bobadela, Mr Khan partilha o espaço com outros jovens que podiam ser os amigos e colegas que deixou naquela cidade do Nordeste do Paquistão, ou os que fugiram antes ou depois dele. O mais novo do grupo tem 21 anos. Com nostalgia, falam dos estudos que concluíam nas universidades de Peshawar, Mardan ou Nowshera: Matemática, Ciências, Engenharia, Informática. E dos projectos que tinham pela frente, antes de serem perseguidos.

Neste gueto da Bobadela, Mr Khan teve um único ganho: perdeu o medo. “Ganhei a esperança de que ninguém me vai matar, aqui.” Julgou morrer no Paquistão, onde os taliban atacam escolas e universidades para atingir alunos e professores como ele que leccionava Electrotecnia. Julgou morrer durante caminhadas e travessias: de frio, sede ou fome; de agonia dentro de um contentor, ou num camião, fechado no porta-bagagens de um automóvel, em que chegou a ser transportado à força; de exaustão, forçado a caminhar durante quatro dias e quatro noites, sem parar.

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Passou por tudo isso por terra – em três meses de viagem – e por mar, quando entrou num bote para 20 pessoas que, nessa noite, transportou mais de 45 homens, mulheres e crianças. “Estava escuro. Nunca soube bem onde estava. Três pessoas caíram à água. Nós avisámos, chamámos, mas eles não quiseram saber.” Pousa a mão no coração e diz: “Eles têm pedra no lugar do coração.”

“Eles”: os agentes, passadores, facilitadores. Nas circunstâncias mais comuns de transporte de refugiados e migrantes para a Europa, são contrabandistas. Seriam traficantes se explorassem os migrantes já depois de estes chegarem ao destino. Não é o  caso. São como peões de uma lucrativa rede que não pode ter falhas, como uma corrida de estafetas, numa cadeia impiedosa de entrega de pessoas.

“Não olhes para trás”

Quando Mr Khan saiu de Peshawar, foi como se lhe tivessem posto uma venda nos olhos. “‘Não olhes para trás’, disseram-me antes de me darem uma ordem: ‘Tens de estar neste sítio, a esta hora, e uma pessoa irá lá buscar-te.’” Cumpriu a hora e o local marcados, sem saber para onde ou por onde era levado. Tudo fora negociado, e o dinheiro entregue, por familiares.

“Algumas pessoas venderam tudo para embarcarem nesta viagem: as suas casas, as suas posses, as terras, jóias. Algumas pessoas tiveram de pedir dinheiro emprestado”, conta Mr Khan. Outras ficam no Paquistão, porque não podem pagar os 2500 euros da travessia no mar, e outros mais de cinco mil euros, que se estima serem necessários para o resto do trajecto. Mas os verdadeiros valores são dessconhecidos.

Mr Khan saiu do Paquistão de noite, caminhando. O mesmo aconteceu com Hassan e Gul Khan, que inventam estes nomes fictícios enquanto falam, sentados ao lado de Mr Khan. Entre eles têm histórias semelhantes, e muito diferentes das de pessoas que nos dois últimos dois meses chegarm a Portugal, vindos dos centros de acolhimento da Grécia ou de Itália, através do plano de recolocação da União Europeia, acordado entre os Estados membros em Setembro. Até à data, segundo as informações prestadas ao PÚBLICO pela Comissão Europeia, esse plano recolocou 583 pessoas, das 160 mil previstas no plano global, em vários países. Dessas, 30 já estão em Portugal (das 4574 previstas para os próximos dois anos), segundo informações do SEF.

Mr Khan e os seus novos amigos chegaram sozinhos, cumprindo ordens e pistas dos agentes, que usam máscaras, têm o rosto coberto, comunicam entre si, por rádio ou telemóvel. E não falam. “Apenas lhes vemos os olhos e a boca, mas estão em silêncio”, diz Mr Khan. Avançam, sem dizer palavra, e sem pausas. Ou impõem paragens bruscas, quando pairam ameaças junto às fronteiras.

“Durante o trajecto, depois de caminharmos vários dias, por vezes fecham-nos num quarto, à espera. Pode ser num deserto ou numa cidade. Não nos dizem onde estamos. Nalguns lugares, quando vemos polícia, temos de fugir”, conta Gul Khan. “No Irão, cruzamo-nos com pessoas que fogem da Síria, do Afeganistão. Por vezes, a polícia dispara na fronteira do Irão, durante a noite”, acrescenta Hassan.

No terreno, os facilitadores ou agentes levam um grupo, que entregam a outro agente, antes de regressarem ao ponto inicial, a partir de onde acompanham um outro grupo. “Viajamos por todos os meios: dentro de um autocarro ou camião, a caminhar de noite, no escuro, passando por vários países, sem sabermos onde estamos", diz Mr Khan, baixando o olhar. "Vi muitas pessoas morrer. De sede, de fome, ou simplesmente porque não tinham forças para seguirem caminho. Eram deixadas ali, sozinhas."

Mr Khan sabe que passou pela floresta da Bulgária, a que chama “selva”, onde viu pessoas vencidas pela morte, no chão. Ele próprio pensou: "Não sobreviverei", recorda. “Há um momento em que nos vemos sem esperança, sem forças, sem capacidade sequer de imaginar outra coisa a não ser a morte. A única coisa que conseguimos pensar é que, no próximo minuto, na próxima hora, ela vai chegar, e nós vamos morrer.”

Durante o caminho, um mesmo grupo de refugiados pode ser repartido em dois ou três mais pequenos – seguindo trajectos diferentes até destinos semelhantes. Pessoas juntas e depois separadas podem voltar a encontrar-se numa etapa mais avançada, num outro país. “Ao longo de toda esta viagem, não há um único minuto em que uma pessoa se sinta segura. Quando estamos cansados, e arrastamos o passo, eles dão-nos pontapés, a homens, mulheres, crianças. Sem distinção”, acrescenta.

Portugal detém agentes

"Eles" são os facilitadores, na definição das autoridades marítimas portuguesas. Facilitam a passagem, e nada mais. Conhecem os pontos não vigiados nas fronteiras. E esse conhecimento vale ouro. Este é um negócio "muito lucrativo", considera em entrevista o subchefe da Polícia Marítima de Portugal Pacheco Antunes. Os facilitadores chegam a transportar 200 pessoas numa só viagem e, por cada uma, podem receber 2000 euros, diz. "O dinheiro é colectado lá, na Turquia", antes do embarque.

A Polícia Marítima participa, desde Outubro de 2015, numa missão de apoio às autoridades gregas no Mar Egeu, integrada na operação Poseidon Rapid Intervention. A missão nasceu com "o objectivo de dar apoio no controlo das fronteiras marítimas e passou a ser mais uma missão de salvamento" devido à frequência dos naufrágios, descreve Pacheco Antunes. Com um oficial de ligação da Guarda Costeira da Grécia percorrem as águas no estreito de cinco ou seis milhas entre a Grécia e a Turquia, até à linha que separa as águas territoriais dos dois países. Desde o início da missão, a equipa resgatou mais de 2200 migrantes e refugiados e deteve quatro facilitadores, que entregou às autoridades gregas, para serem julgados.  

Nalguns casos, os facilitadores misturam-se com as pessoas que transportam, e conduzem os botes. Na maioria das vezes, porém, dão instruções aos migrantes, indicam-lhes pontos de referência, e largam-nos sozinhos no mar. “A maioria dos migrantes ou refugiados nunca viu o mar. Há pois mais riscos se forem eles a pegar na embarcação. Não têm experiência”, salienta o subchefe Pacheco Antunes. Para alguns, conduzir o bote é uma maneira de pagar a travessia. “Trazem os pontos de referência, do percurso, mas chegam ao lado [do ponto desejado], por causa do vento ou das correntes marítimas. Muitas vezes os pontos onde chegam são pontos perigosos, como falésias ou rochas”, explica.

Dos quatro facilitadores que a Polícia Marítima deteve no Mar Egeu desde o dia 1 de Outubro, três eram turcos, um era sírio. Este último estava sozinho no bote quando foi cercado. O homem tinha acabado de deixar um grande grupo de pessoas na ilha de Lesbos e voltava para a Turquia, onde "a zona costeira está carregada de migrantes prontos a embarcar". O negócio prospera, diz Pacheco Antunes, também devido à postura da Turquia que "não dificulta" a saída das embarcações e pela "vasta área dos 500 quilómetros de costa que a Europa tem que controlar e não consegue" e por fazer face a "uma rede montada".

"Nestas redes de auxílio à imigração ilegal, por exemplo, também há pessoas da América do Sul. E esta actividade é mais lucrativa e mais segura do que o tráfico de droga”, diz ao PÚBLICO. Nestes casos, “as mercadorias não têm de ser entregues no destino, como a droga”. E não falam. "Quando estão em trânsito, [os migrantes] vêm sempre com muito receio de falar", de denunciar. "As condições em que vêm são negociadas." 

Chegam, a qualquer destino, como chegaram Mr Khan, Hassan e Gul Khan, no meio da noite, a um parque de Lisboa, de que não sabem dizer o nome. “Dirigi-me ao SEF na manhã seguinte. Foi assim que cheguei aqui ao CPR em Janeiro", diz Hassan. Assim que se instalou, Mr Khan tentou comunicar à família que estava bem. A família já tinha fugido da casa onde várias vezes receberam ameaças por Mr Khan ser professor na universidade.

Um vizinho suplicou-lhe, por medo, que não voltasse a contactá-los. “Os espiões taliban estão por todo o lado. As pessoas têm muito medo dos taliban. Mesmo quem quer, não pode ajudar.” Por isso, as pessoas que podem fogem. Não partem, diz Mr Khan. “Nada é mais doce do que a nossa terra. A nossa família está lá, a nossa terra está lá. Mas quando somos ameaçados, temos de fugir.”

Num grupo mais alargado de paquistaneses que chegaram entre Dezembro e Janeiro, alguns aguardam resposta ao pedido de asilo. Por quanto tempo, não sabem. Uns já receberam um "sim". Alguns já receberam um “não”. Na entrevista no SEF, “não acreditaram na minha história”, diz Hassan, que se preocupa por não estar a dedicar o seu tempo aos estudos. Vão recorrer dessa decisão, sem garantia de algum dia lhes ser reconhecido o estatuto de refugiado. Enquanto esperam, contam a sua história. Como Mr Khan: “As realidades têm que ser contadas. Só assim, o mundo poderá ser diferente.”

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