João Tordo, um sólido trabalho de linguagem

Em O Paraíso Segundo Lars D. João Tordo confirma um sólido trabalho de linguagem.

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João Tordo volta a tentar aceder ao lugar onde a criação acontece. E se a literatura for a única verdade? Miguel Manso

“E no silêncio, o que acontece?” A pergunta da mulher do escritor Lars D., logo no início do mais recente romance de João Tordo (Lisboa, 1975, pode funcionar como um pilar à volta do qual se estrutura o segundo volume da trilogia iniciada com O Luto de Elias Gro (Companhia das Letras, 2015) e que marca uma viragem no percurso literário de Tordo. O que se passa na cabeça de alguém para quem talvez fosse preferível desaparecer. “Desaparecer era quase um dever de cada homem, para que pudesse ver a sua vida do lado de fora…” Num lugar de onde não chegue um som, parece haver essa possibilidade.

João Tordo volta a tentar aceder ao lugar onde a criação acontece. Não para descobrir o processo mas para encenar uma possibilidade. E se Deus e o homem se revelarem nesse silêncio? E se nem um nem o outro existirem e tudo for ilusão? E se a literatura for a única verdade? Continuamos num território sem nome onde vive o homem só, perante o abismo de existir. Tordo fê-lo escritor e chamou-lhe Lars. Mas tem características de outros autores. Como Philip Roth, por exemplo, ele escreve de pé, para evitar as dores nas costas, e acredita, como Unamuno “que a verdade é precisamente o contrário que os nosso olhos no dizem”.

Na sua existência de asceta, Lars persegue o silêncio. Tem 66 anos, “dos trinta e três aos quarenta e oito anos escreveu dezoito romances”, e tinha um por publicar, escrito antes de desaparecer e que deixa à mulher. Nada mais que O Luto de Elias Gro. O leitor descobre desta forma estar perante o escritor fantasma Lars Drosler. O campo é o da metaliteratura. Lars personagem é, noutro livro, o Lars criador dessa personagem num romance em que se mitificou. Pôs-se a viver numa casa que o mar inundou levando na água todo o seu legado, facto que passa a alimentar a imaginação dos habitantes da ilha onde tudo se passa. Lars quer sempre desaparecer mas deixa sempre uma marca tornando a sua ausência uma eterna presença.

O Paraíso Segundo Lars D. revela, assim, a origem de O Luto de Elias Gro num jogo que João Tordo aprofunda, baralhando a ideia de autor e de Deus – e de homem comum - criadores de mundos onde o lugar da ilusão, do sonho ou do que chamamos real depende mais da experiência de cada uma das personagens que os habitam – a esses mundos - do que da determinação de um fazedor. Tudo se passa nesse silêncio interior, íntimo, a que Tordo quer aceder num livro curto, o mais curto dos seus livros, com poucas personagens, quase nenhuma acção, e onde fica mais exposto o protagonismo dado ao trabalho com a linguagem que já iniciara em O Luto de Elias Gro. Recupera-se um comentário a essa leitura: “O narrador chega à ilha para fazer o seu luto e no seu isolamento auto-imposto, no “inferno circular” da sua cabeça, apercebe-se de que uma ilha é um território apetecível a quem lida com a perda.” Neste romance seguinte, Tordo tem dois narradores -- a mulher de Lars e Lars – e mantém a ilha, desta vez como metáfora existencial, pegando no cliché “todo homem é uma ilha” para arquitectar o tema da solidão, do vazio, que já iniciara também em O Luto… e que aqui se evidencia.

“Os últimos livros do meu marido são um progressivo chamamento ao silêncio”. É assim que a mulher descreve Lars após o dia em que ele se torna uma ausência na sua vida. Uma manhã bem cedo, quando ele sai de casa para um passeio depois de uma insónia, encontra uma adolescente, Gloria, a dormir no interior do seu carro. Leva-a para casa, alimenta-a, deixa-a dormir no sofá, e a pedido da mulher, quando ela acorda, leva-a à estação de comboios. No percurso, faz um desvio e segue de carro com ela até uma praia a uns trezentos quilómetros de casa. Lars não volta. Em casa, a mulher vive essa ausência partilhando-a com um vizinho mais jovem, Xavier, estudante de Teologia, entusiasta e crítico da versão do Paraíso contada por Milton em O Paraíso Perdido, e com quem discute o paradoxo de Deus, e a busca do divino enquanto salvação. Ou a descoberta trágica, que terá sido a de Lars, segundo Xavier. “O homem descobre que a identidade humana é uma fraude. Devia ser uma grande alegria, certo? Mas o grande perigo da busca é esse mesmo. É descobrirmos que toda a identidade é uma anedota.”

Se em O Luto de Elias Gro há um livro a comandar a narrativa, aqui existem dois. O de Milton, e a sua concepção do homem à mercê de uma mulher ardilosa que o comanda para o abismo, e que no romance pode ser simbolizada por Gloria, e o diário de Etty Hillesum, onde a mulher do escritor se revê na sua vontade de ser cuidada em vez de cuidadora. Aquela que não se quis intrometer no silêncio do marido, que não reclamou nunca a sua presença, tem agora, na sua ausência de facto, a tarefa de tornar público o lugar onde o marido mais se revela, e ideia da literatura como lugar de verdade. Será?

Tordo não dá respostas. Alimenta cuidadosamente a ambiguidade, o paradoxo, como se fizessem parte de um silêncio cujo mistério não quer desvendar. Consegue muito bons momentos, arrisca na forma, alternando uma e outra voz, não se acomodando – e este livro é mais uma prova - a uma fórmula (anglossaxónica) que lhe garantiu grande visibilidade e o reconhecimento de ser um autor sólido. Tivesse sido ainda mais contido, não caindo por vezes na tentação de explicar uma ideia que depois o leva ao óbvio, ao escusado (ex: “dou-me conta da necessidade que um escritor tem de dizer a verdade, ou habilita-se a ser um falsário, ao qual não se atribui mais importância do que a uma criança mentirosa”; “Escrever era aquilo, era abrir a porta de um quarto escuro onde milhares de vozes estavam fechadas sem poderem sair e cujos ecos nos chegavam em sussurros, em carícias, em doces murmúrios, estamos aqui, não nos abandones; os braços gesticulando fora da porta, entrelaçados, sombras de braços e mãos em busca de um resgate”), e este Paraíso Segundo Lars D. seria um livro ainda melhor.

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