Quando os This Heat avisaram o mundo

A reedição das três principais obras dos ingleses This Heat é um testemunho fulgurante da música popular urbana a avisar o mundo.

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A banda que, na Inglaterra dos anos 70, melhor soube traduzir o mundo na música que fazia: This Heat

O que nos diz hoje a pop e o rock sobre o que se vive na Síria, na Grécia ou na Dinamarca? Que sentido dá aos acontecimentos que se desenrolam nesses lugares? Uma resposta modesta: nada. Para além das auto-celebrações (do sucesso, da fama, da diferença) e do culto (cada vez mais serôdio) da introspecção, aos artistas só tem restado o silêncio. Deixaram de saber falar ou de cantar o mundo. Apesar do panteão respeitável que ajudou a construir, a música pop-rock nunca foi um grande território para o pensamento, sobretudo, e passe o chavão, para aquele a que habitualmente se qualifica de “crítico”. Lacuna de uma arte que (como o cinema) sempre foi uma indústria.

Ora felizmente houve, haverá excepções. Pense-se, por exemplo, nesses maravilhosos Buzzcocks. Uma viagem à sua discografia permite reencontrar, sob os riffs e as melodias, observações certeiras e inteligentes dirigidas à sociedade em que viviam e que ainda é nossa. Ouçam Harmony in my Head, Boredom, Everybody’s Happy Nowadays. São curtíssimas bombas-bombons envolvidas numa sátira tão doce quanto triste.

Mas quem quiser ouvir a banda que, na Inglaterra dos anos 70, melhor soube traduzir o mundo na música que fazia, deve procurar outro nome: This Heat. E em boa ocasião o fará. Os seus três principais álbuns – This Heat (1979), Health & Efficiency (1980) e Deceit (1981) – voltam a estar disponíveis, numa reedição da Light in The Attic, e nunca terão sido tão necessários. Esta história começou em Londres em 1976 à beira do estremunhar do punk. Charles Hawyard, o baterista, andava na companhia de Phil Manzanera a tentar pôr em marcha os Quite Sun, quando as exigências dos Roxy Music se revelaram incontornáveis. Assim morreu um projecto, assim nasceria outro. Hawayard insistiu, chamando a si Charles Bullen e Gareth Williams, e os This Heat estrear-se-iam ao vivo, num concerto em Hampstead.

Acolhendo com agrado a energia do punk, o trio furtar-se-ia, no entanto, aos movimentos do “novo movimento”. As filiações eram outras, nomeadamente no prog-rock, e o fazer aspirava a outra liberdade. John Peel não tinha dúvidas. Nada era comparável aos This Heat, tal era mistura de géneros e afinidades, tal era abordagem ao improviso, à composição, ao trabalho do som no espaço. Senhores de uma síntese estranha, fascinante e desconfortável, a banda faria até 1981 um caminho solitário e livre. Em 1977, deixam Londres e alugam em Brixton um antigo armazém de carnes. A ausência de janelas e as paredes ainda sujas de sangue não os demovem. Limpam-no, pintam e apelidam-no de Cold Storage. Têm agora um espaço onde fazer música, sem se preocuparem com horários e visitas indiscretas. E será aí, ao longo de sessões ininterruptas de ensaios, que edificam uma das mais premonitórias discografias da música popular. Em simultâneo, antecipam tendências e “géneros”, e com uma intuição fortíssima, algumas das realidades e problemáticas que hoje enfrentamos. Alguém escreveu que naquele espaço, os This Heat viram o nosso presente antes de voltarem ao passado para deixarem a avisos sobre o futuro. Terá escrito bem.

This Heat, o álbum de estreia, dá a escutar a experimentação a que o trio se entregou com a parafernália de instrumentos, com as possibilidades oferecidas pela manipulação das fitas e a rarefacção do espaço. Não faz qualquer concessão a formatos, à melodia, à canção. É feito de saltos abruptos, rupturas, espasmos. Desperta em Test Card com o que parece ser o ruído de uma máquina avariada, mas logo se transforma, pela força do hit-hat e do baixo, num tema de noise-rock. A agressão e a força são evidentes, mas Horizontal Hold é irrequieto, e recua para algo menos autoritário. Os This Heat não satisfazem o ouvinte, mas também não o querem castigar como se constata no transe dramático de Not Waving. Sobre uma melódica, viola, sons de sinos, Hayward murmura “Not waving but drowning, Just a nervous reaction, Please don’t rescue me”. This Heat prolongará este desespero delicado, quase lúdico. Pequenos acordes, loops e percussão desenham Twilight Furniture até à explosão de 24-Track Loop, a faixa em que Simon Reynold escutou o que viria a ser o jungle dos anos 90: uma descarga de electricidade e ritmos. Ao longo dos instantes finais, o primeiro disco conduzirá o ouvinte num desconforto permanente, entre as aparições de Hayward e as dos instrumentos, deixando sobrevir um tom fúnebre, elegíaco. É um disco que suspira.

Gravado em 1980, Healt and Efficienty surge como uma provocação no melhor espírito dada. O primeiro lado parece reconciliar-se com a música rock. O trio canta, toca riffs, a bateria agita-se. Exulta e faz exultar. As derivações mais radicais do indie-rock americano já estavam aqui e ninguém acredita que Steve Albini não tenha tropeçado nele. Mas o tema dobra-se, interrompe-se, sofre abalos, e afasta-se. Não é uma desconstrução, mas uma aventura. O espanto aumentará do outro lado: está ocupado por um som contínuo que se calará ao fim de oito minutos. Frustração e alarme.

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Deceit é a obra-prima dos This Heat, mais limpo, directo. Um disco acossado pela ameaça nuclear e a auto-aniquilação do homem, receoso das fantasias do progresso. Se This Heat murmurava, Deceit grita, berra, por vezes em coro. O que dizer de Sleep, a faixa de abertura, essa canção de embalar que nos convidar a dormir, segredando-nos ao ouvido: “A life cocooned in a routine of food, Stimulus and response, Softness is a thing called comfort, Doesn’t cost much to keep in touch”. Querem uma canção que diga que o homem é mais do que um animal submetido ao ritmo biológico da vida? Aqui a têm. Paper Hats, tema que adivinha de uma vez as experimentações do rock dos últimos 20 anos, dirige-se ao ouvinte (“well, what do we expect, paper hats? or maybe even roses? the sound of explosions?”), mas não faz a vontade ao fã; S.P.Q.R, um dos temas mais populares dos This Heat (que lhes valeu disseram algumas vozes, um concerto com os U2) é nesse aspecto mais acessível, com o seu irresistível e irónico refrão. Chegará depois o lamento de Cenotauph onde se escuta a frase history repeats itself e, finalmente, o grande momento que é A New Kind of Water. Pode uma canção de rock ser tão importante como uma obra do pensamento? Pode, quando canta: I don’t know either, what is the answer?; We were told to expect more, And now that we’ve got more We want more, we want more”. Os This Heat já estiveram aqui, neste tempo.

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