Uma guitarra que soa a caminhadas e a medronho

Na noite de abertura do nono Festival Rescaldo, palco para Filipe Felizardo. Um homem, uma guitarra e uma proposta de como esticar o tempo para lá do bulício das cidades.

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O guitarrista Filipe Felizardo Sara Rafael

Agora, quando olha para trás, Filipe Felizardo observa que: só começou verdadeiramente a tocar guitarra há cinco anos; só ultrapassou o deslumbramento com as suas conquistas técnicas há menos ainda do que isso. Esta sexta-feira na Culturgest, Lisboa, no concerto de abertura da 9ª edição do Festival Rescaldo – dedicado às músicas exploratórias –, veremos um filho de professor de guitarra empenhado na exploração textural do som e a obedecer a uma relação emocional com a música que estavam ainda longe da sua expressão quando, em 2011, resolveu regressar à guitarra para a qual deixara de ter tempo.

Não por desinteresse, mas durante um longo período os seus dias eram ocupados com a frequência da Escola Superior de Cinema (das 9 às 5) e os trabalhos numa loja de discos (das 6 às 10 da noite, duas vezes por semana) e num parque de estacionamento subterrâneo (da meia-noite às oito da manhã, quase sempre). A guitarra, por mais que quisesse, não tinha por onde se mostrar. Tudo se alterou quando Felizardo passou a acumular dois trabalhos diurnos que lhe libertaram as noites. “Desde há algum tempo tenho uma sala de ensaios, uma caverna onde posso tocar ao volume que me apetece, e tenho um amplificador construído por um amigo que é uma réplica com algumas mudanças contemporâneas do amplificador do Neil Young”, explica ao PÚBLICO. Foram esses dois factores (a possibilidade de tocar com um volume “que não pretende agredir os ouvidos de ninguém, mas necessário para obter um certo tipo de texturas”, e o equipamento desenhado à medida) que o atiraram de novo para a música.

Ajudou também a que, durante seis meses, Filipe Felizardo tenha tido a seu cargo o acolhimento dos músicos na Galeria Zé dos Bois. Perante uma tal avalanche de concertos foi impossível não começar a pensar naquilo que faria se subisse àquele mesmo palco. Em simultâneo, o contacto com a música implosiva dos Bardo Pond (e dos seus milhentos projectos paralelos) e dos Les Rallizes Dénudés pegava-se a uma das suas maiores referências de sempre, o altamente influente guitarrista John Fahey. “Fiquei completamente passado”, recorda da descoberta de Fahey. “Por causa da simplicidade, da brutalidade poética e por não ser um exímio guitarrista.” Fahey e Les Rallizes Dénudés fazem parte de um conjunto reduzido de referências a que regressa obsessivamente e que lhe deram um norte.

Caminhadas e medronho

No palco da Culturgest, na mesma noite em que actua ainda o duo OZO (Paulo Mesquita em piano preparado e Pedro Oliveira, dos Peixe:Avião, em bateria preparada), vai passar sobretudo pelo material registado no extenso álbum VolumeIV – The Invading Past and Other Dissolutions. O álbum de guitarra solo foi gravado por Felizardo numa residência artística no Moinho da Fonte Santa, no concelho alentejano do Alandroal, um espaço que recebe artistas onde antes residiu durante uma década o casal Michael Biberstein (pintor) e Ana Nobre de Gusmão (escritora).

Filipe Felizardo partiu para o Alentejo com uma série de temas “em que andava a trabalhar”, com o propósito de criar uma disponibilidade para “passar vários dias seguidos a tocar e ver como é que esses temas mudavam”. Pelo meio, as caminhadas na paisagem em redor e as garrafas de licor de medronho ajudariam a distender a sua música – composições de três minutos passaram a espraiar-se por dezassete –, ganhando uma respiração que ultrapassa em muito a sua anterior “atitude exploratória um bocadinho mais gratuita”. A guitarra, intrometendo-se sinuosamente no silêncio, responde sempre a essa respiração solta e como se acompanhasse o ritmo natural das suas passadas. Felizardo, quase incrédulo de hoje avançar tal hipótese, diz: “Pelos vistos, a contemplação romântica também é importante na minha música.”

Ao permitir-se uma resposta mais emocional perante as próprias composições, algo com que se confessa “maravilhado” – “faz-me sentir esta zona de conforto e desconforto que é estar a conseguir fazer aquilo que sinto com um instrumento que gradualmente vou conhecendo”, explica –, Volume IV cresceu para lá do esperado e Felizardo viu-se diante da difícil abordagem ao editor da suíça Three:Four Records a quem entregou um álbum que, para comportar toda a torrente musical saída das sessões, teria de ser editado como duplo LP. E assim foi. Volume IV, em toda a sua extensão, gravado a dez quilómetros de quaisquer sinais de civilização e na vizinhança de um coro de sapos, faz-se do vagar e da poesia que parece ter sido varrido para longe da vida nas cidades.

Outras músicas

Depois da dupla jornada de abertura, no sábado o Rescaldo recebe concertos de Norberto Lobo e do trio Timespine (de que faz parte Tó Trips, dos Dead Combo), retomando a sua programação a 25 de Fevereiro na Zé dos Bois, com Acid Acid e Plus Ultra. A 26, de novo na Culturgest, uma das actuações mais aguardadas deste edição – a colaboração inédita entre os psicadélicos barcelenses Black Bombaim e o mestre alemão da música improvisada Peter Brötzmann. Também a 26, tocarão ainda os Papaya e no dia seguinte, encerrando este Rescaldo, dose tripla com HHY & The Macumbas, Tren Go! Soundsystem e Gala Drop.

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