Emma Donoghue classifica o seu Quarto: caminho da escuridão à luz

Não é uma história de horror mas um caminho desde o lado mais negro até à luz. É assim que Emma Donoghue classifica O Quarto de Jack, o romance que publicou e deu origem ao filme Quarto, nomeado para quatro Óscares. Um deles para argumento adaptado da autoria da própria Emma.

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Emma Donaghue é a autora do argumento (nomeação para o Óscar) que adapta o seu próprio romance - O Quarto de Jack é agora um filme de Lenny Abrahamson

Em 2010, ano em que publicou Room, editado em Portugal um ano depois com o título O Quarto de Jack (Porto Editora), a escritora irlandesa Emma Donoghue (Dublin, 1969) conseguiu o aplauso de leitores e crítica. O romance seria um best-seller, venceu o Orange Prize e foi finalista do Man Booker. Seis anos depois, o livro chega ao cinema adaptado pela própria Emma Donoghue, num filme realizado por Lenny Abrahamson que partilha a perspectiva do original, ou seja, a história constrói-se a partir da voz e dos olhos de uma criança de cinco anos que, pouco depois do início da história, se percebe viver como prisioneiro e ter nascido de uma violação. O filme não reúne o mesmo consenso do livro mas conseguiu a nomeação para quatro Óscares em categorias principais: melhor filme, melhor realizador, melhor actriz principal e melhor argumento adaptado naquela que foi a estreia de Donoghue na escrita para cinema. “Esperávamos [a nomeação] para melhor actriz. As outras três foram absolutamente surpreendentes”, confessou a escritora ao Ípsilon, dois dias após saber das nomeações.

Não há muitos casos em que o autor do romance seja o escolhido para o adaptar ao cinema com este resultado. Ela fez por isso. Já vamos lá. Para já há uma ressalva. No romance, como no filme, Emma Donoghue nega que esta seja uma história de horror. O horror é antes a base para montar a relação “banal” entre uma mãe e um filho e esse é o núcleo. Uma mãe que se preocupa com a educação, a alimentação, a rotina, as horas de televisão diárias, a leitura, o exercício físico. Por isso, quando questionada sobre o peso de entrar por duas vezes num universo tão negro – romance e filme -, responde com o percurso em que a sua escrita se estruturou. “Foi um caminho desde o lado mais negro até ao mais luminoso”. Donoghue garante, desta forma – e apesar de poder “parecer cruel” -, que não houve muita angústia ao narrar a história de uma mulher e de uma criança mantidas em cativeiro num espaço exíguo, por um homem que é também raptor e violador.

No início do acto criativo, saber que ia do cativeiro para a liberdade atenuou a incursão no sórdido de uma história cujo fascínio literário está justamente no modo como ela é contada. “A grande dificuldade esteve na investigação, que incluiu não apenas casos de rapto, mas muitas formas estranhas ou negativas em que tantas crianças têm de crescer”, continuou Donoghue para princípio de uma conversa sobre como o Quarto de Jack, romance, deu origem a Quarto, filme realizado Lenny Abrahamson, que se estrou em Portugal na passada semana.

O Quarto de Jack, o livro, seria mais fácil de imaginar num palco do que no cinema. Mais de metade passa-se num universo muito fechado, na intimidade de duas pessoas circunscrita a onze metros quadrados. Mãe e filho desenvolvendo entre si um código que lhes permite sobreviver em circunstâncias limite. A mulher permaneceu sete anos naquele espaço depois de ter sido raptada na rua, aos 19 anos; a criança foi concebida numa das muitas violações de que foi vítima e nasceu ali. O raptor voltava regularmente para levar mantimentos e abusar sexualmente da mulher enquanto a criança – a quem nunca foi dito que ele era o pai - fantasiava sobre um mundo que lhe chegava pela televisão e pelas histórias que a mulher - a “Mamã” - lhe contava. Até aos cinco anos, a vida da criança - Jack - foi o quarto, e a linguagem que aprendia era para nomear o que nele existia. Uma cama, um roupeiro, uma banheira, uma cobra de brincar feita de cascas de ovos, o pedaço de céu que via através de uma clarabóia. Coisas que tratava como sujeitos no seu modo solitário de socializar. Fora isso, tudo era ficção e era a ficção que lhe permitia um vocabulário muito mais extenso e complexo do que o delimitado pelos onze metros quadrados do quarto.

O Quarto de Jack foi o sétimo romance de Emma Donoghue. Para o escrever inspirou-se na história de Joseph Fritzl. Conhecido como o “monstro” de Amstetten (sul da Áustria), Fritzl prendeu a filha Elizabeth numa cave e violou-a regularmente entre 1984 e 2008. Nesses 24 anos teve com ela sete filhos. Um seria morto por ele. O caso foi descoberto em 2008 e Fritzl condenado a prisão perpétua.

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Mais de metade do filme passa-se na intimidade de duas pessoas circunscrita a onze metros quadrados. Mãe e filho desenvolvendo entre si um código que lhes permite sobreviver em circunstâncias limite

Uma linguagem para o privado
Donoghue não explora a relação entre o carrasco e as suas vítimas a não ser no estritamente necessário para se perceber o seu papel – determinante – no vínculo que se cria entre mãe e filho. É aí, nesse universo muito privado que a escritora situa o livro. Como poderia uma adaptação ao cinema entrar nesse espaço sem o deturpar? “Ao escrever o argumento, a minha grande preocupação foi evitar qualquer tipo de voyeurismo, sentimentalismo ou uma excessiva dependência de ferramentas literárias, como a voz-off”, diz.    

No livro, conhecemos Jack e a “Mamã” no dia em que ele completa cinco anos. “Hoje faço 5 anos. Ontem à noite, quando fui dormir para o Guarda-Fatos, tinha 4 anos mas quando acordei na cama às escuras, já tinha 5 anos, abracadabra. Antes disso tinha 3 e antes 2 e antes 1 e antes 0.” São as primeiras palavras do livro até à pergunta que se sucede de imediato e esclarece acerca do tom em que será feita a narrativa: “Eu cheguei a ser um número abaixo de 0?”. Narrado na primeira pessoa por um rapaz de 5 anos criado nestas circunstâncias excepcionais, O Quarto de Jack é antes de mais um exercício de linguagem marcado por uma grande contenção emocional e delicadeza no modo como explora um tema fácil de derrapar no óbvio. A consciência desse risco levou a que Donoghue tomasse algumas precauções. O caso Fritzl, mas também o de Natasha Kampusch (em cativeiro entre os 10 e os 18 anos) tornavam o tema actual. Ao ler o livro, a sua agente disse-lhe que não deveria tardar a que surgissem propostas para o levar ao cinema. A escritora não estava disposta a confiar essa tarefa a ninguém e decidiu tentar contrariar a tendência de o autor do romance não ser o mesmo do argumento a que dá origem. “Escrevi o primeiro esboço do argumento ainda antes de o romance ter sido publicado, só para me dar a oportunidade de tentar que ficasse como eu queria, antes que alguém pudesse pôr em evidência a minha inexperiência e me aconselhasse a não o fazer ou a fazê-lo de modo diferente”, refere.

A agente não se enganou. O livro saiu, surgiram vários interessados, e um dia a escritora recebeu uma carta de Lenny Abrahamson [realizador de Frank, com Michael Fassbender]. Convenceu-se de estar perante um bom leitor e a partir daí o projecto “passou a ser um trabalho de equipa”, comenta. “Escrevi muitos mais esboços, sempre com um feedback regular da parte dele, e aprendi com ele muito acerca de ritmos de cinema”. As filmagens seriam em Toronto, no Canadá, onde Donoghue vive há vinte anos. Isso permitiu-lhe acompanhar de perto o trabalho de Abrahamson, incluindo ter uma palavra na escolha dos actores – Brie Larson (a Mamã) e Jacob Tremblay (Jack). “Foi a melhor relação de trabalho da minha vida. Apercebi-me de que o tipo de trabalho de equipa que tínhamos era muito invulgar. Muitos argumentistas disseram-me que geralmente eram mantidos à distância pelos realizadores, especialmente se havia mão deles no argumento”, comentou. 

No filme, o lugar reservado ao quarto ocupa menos tempo do que no livro. A formação da linguagem, o modo como ela é estimulada e se adapta a uma claustrofobia que no livro o leitor apenas sente na mãe, ou à fantasia - que parece ilimitada - de Jack, em contraste com a realidade a que está confinado, é mais sugerida do que conseguida. Para Jack, há o mundo da televisão e o dos livros que a mãe lhe lê e através dos quais o ensina a ler. No romance, esses livros fazem um enorme contraponto com o horror pressentido, fornecem ferramentas que o ajudam lidar com o medo, o silêncio ou os sons de uma realidade que mitifica. Para Donoghue é como se no espaço fechado do quarto a liberdade estivesse reservada à linguagem e às ligações que só ela permite. É isso e que torna o real de Jack muito maior do que os metros onde vive.  

Pergunta-se o que é, afinal, o real para Jack. Ainda no livro, Donoghue joga com esta questão, que é também a que o leitor vai fazendo graças ao modo como o romance é arquitectado. “Vi o Nico Mafarrico algumas noites pelas ranhuras mas nunca o vi todo de perto”, conta, sobre o que lhe chega pelas ripas do roupeiro onde dorme nas noites em que o carcereiro vai ao quarto. “O cabelo dele tem umas partes brancas e é mais curto do que as orelhas. Talvez os seus olhos me transformem em pedra. Os mortos-vivos mordem os miúdos para que fiquem como eles, os vampiros chupam-nos até ficarem sem força. Os ogres balançam-nos pelas pernas e comem-nos. Os gigantes também podem ser muito maus; morto ou vivo, vou roer-lhes os ossos para fazer pão, mas o João fugiu com a galinha dos ovos de ouro e deslizou pelo pé de feijão muito, muito depressa. O Gigante vinha a descer atrás dele, mas o João gritou para que a Mamã lhe desse o machado, que é como as nossas facas mas maior…”

No filme, este mundo de Jack - mais conseguido no livro na parte em que mãe e filho se limitam ao quarto - é dado muito à superfície e a sensação é a de que quando se quis passar esse universo à imagem a contenção literária se traduziu em medo de aprofundar. Outra diferença substancial em relação ao livro é a da perspectiva. Ainda que a voz e os olhos sejam os de Jack, o ponto de vista que sobressai é o da mãe, e fica por esclarecer se isso é intencional ou se deve à interpretação de Brie Larson. Donoghue fala antes da diferença de linguagens entre romance e cinema. “Um romance tem uma estrutura muito flexível, há tempo suficiente para cada pequena coisa que ocorra ou para cada pensamento, enquanto o cinema dá às personagens uma grande fisicalidade, e o cenário, um enorme realismo.” A sua grande preocupação, o que persistiu sempre ao longo da adaptação, foi “como dizer uma coisa visualmente, como dizê-la, recorrendo à acção em vez de o fazer em discurso, como dizer de forma concisa em vez de alongada…” Afirma que essas perguntas permanecem, mesmo quando vê no ecrã o que para ela é o melhor do filme: “as cenas entre mãe filho; muitas, totalmente improvisadas” e que resultaram de uma cumplicidade entre os dois actores nas três semanas que tiveram para se conhecerem antes das filmagens. 

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