Ana e Pedro Walgode, uma espécie de Ferrari da patinagem artística

Ela quer ser médica, ele engenheiro químico. Ela tem 18 anos, ele 21. Ela aprendeu a tocar piano, ele clarinete. Ana e Pedro Walgode são irmãos. Exigentes, destemidos, perfeccionistas. Em 2015, honraram Portugal com prémios nunca antes alcançados por um par sénior português na modalidade.

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Fernando Veludfo/NFactos
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São quase 18h30 e os irmãos Ana e Pedro Walgode (apelido holandês de uma trisavó do lado paterno da família) chegam ao Pavilhão Municipal de Custóias, em Matosinhos. Depois de mais de um dia de aulas, é tempo de treinar até às 21h. Treino técnico, detalhes analisados à lupa pelo treinador Hugo Chapouto, bicampeão do mundo em patinagem artística na variante solo dance em 2009 e 2010, primeiro campeão mundial português. Chapouto tem vários pares no pavilhão e os seus olhos acompanham os movimentos. Ana e Pedro aquecem nos primeiros minutos, correm à volta do ringue. Depois calçam os patins com rodas e entram em acção, sempre atentos às indicações do treinador.

Esta é a segunda época dos irmãos Walgode na Rolar Matosinhos — Associação Desportiva. As competições avizinham-se e eles, como sempre, prometem dar tudo o que têm. O treino continua e eles movimentam-se pelo ringue de uma ponta à outra. A cara, os braços, os pés, as inclinações, as expressões. Tudo conta na hora das avaliações nacionais e internacionais. O Verão será novamente passado a treinar de manhã à noite, sem contar as horas de ginásio. Eles sabem que o trabalho compensa.

Ana e Pedro não são um par qualquer no mundo da patinagem artística. Em 2015, trouxeram para Portugal o título de campeões da Europa em pares e uma medalha de bronze do Campeonato do Mundo no escalão sénior — Portugal ficaria em terceiro lugar no ranking dos países. Na vertente individual, Ana ainda pôs ao peito a medalha de ouro no Campeonato Europeu e a medalha de prata na competição mundial, que decorreu na Colômbia. Pedro ficou em terceiro lugar em solo dance, escalão sénior, no Europeu que teve lugar em Itália. Chegaram felizes a Portugal, com a sensação de terem honrado o país, e com prémios nunca antes alcançados. Além das danças obrigatórias, dançaram um quick-step, um mix de samba e mambo em fatos amarelos e Ana vestiu-se de Cleópatra na prova livre — noutras competições, Ana já foi Marilyn Monroe e a dupla já encarnou Bonnie and Clyde.

São exigentes nas prestações. No intervalo do treino, respondem às questões do PÚBLICO numa conversa informal. São perfeccionistas, focados, dedicados, atentos aos pormenores. “Procuramos sempre fazer melhor, melhor, melhor”, diz Ana. Não é fácil treinar um ano inteiro para, em poucos e intensos minutos, mostrar o que se vale. Têm conseguido, os prémios não enganam. “Um jogo de futebol tem 90 minutos, dá tempo para fazer muita coisa. Nós treinamos imenso para, em dois minutos e 45 segundos, darmos o máximo”, comenta Ana. “No Mundial, fazemos três ou quatro provas curtas e intensas. Há muita pressão, treinos, patrocínios, tempo, disponibilidade”, acrescenta Pedro. E não há superstições antes de entrar no ringue. Falam, apoiam-se, dão força um ao outro. Como irmãos.   

As quedas assustam, mas não são o pior receio. Ana explica. “Às vezes, cair não é tudo. Podemos ter uma prova muito boa e cair, mas o resto é muito bom. Ou podemos ir um bocadinho a medo e, para não cair, fica tudo mau no geral, menos intenso.” O objectivo é dar o máximo. Sempre. E em todas as coreografias, que são naturalmente complexas, fazer com que tudo pareça fácil. Dançar com corpo e alma para o público e sete juízes que avaliam as componentes técnica e artística. Se houver queda, como já aconteceu, levantam-se e seguem com a coreografia. Se a prova não correr bem, na seguinte tentam dar o melhor.

O ano de 2016 começou e os irmãos Walgode, que nasceram em Mafamude, Gaia, e moram em Espinho há 15 anos, têm pela frente os campeonatos regionais e nacionais, obrigatórios para o apuramento. Se tudo correr bem, segue-se o Campeonato da Europa, em Agosto, na Alemanha, e o Mundial em Setembro, em Itália — considerada a grande potência nesta modalidade. A partir de Março, os treinos intensificam-se, são diários, e no Verão treinam das 9h às 18h. “Não temos Verão, no ano passado eu e o meu irmão fomos à praia duas vezes.”

Estudar, treinar, vencer competições nacionais e internacionais. Resta pouco tempo. Pedro tem a sua teoria. “As pessoas quanto mais tempo têm menos fazem.” Algo que, por vezes, se aplica à dupla. Depois do Mundial, param um ou dois meses. Ana confessa que chegava a casa depois das aulas, deitava-se no sofá, ligava a televisão, juntava-se às redes sociais. Para Pedro, é uma questão de organização, de método. É um jovem focado. Fora esse tempo de pausa, é sempre a rolar. Já houve dias em que Ana saía das aulas e almoçava no carro, enquanto o irmão conduzia, a caminho do treino. “É muito esforço, muito sacrifício. Abdicamos de muita coisa. Às vezes, pensamos um bocadinho, é normal, mas também pensamos que é isto que nos faz pessoas destacadas, pessoas diferentes”, refere Ana. “Em qualquer coisa, é preciso esforço. As coisas não aparecem feitas.”

O esforço não tem sido em vão. Hugo Chapouto sabe quem tem no ringue e garante que não é fácil treinar o par de irmãos Walgode. “É exigente, porque são dois atletas e duas pessoas que têm muita sede de conhecimento. Muitas vezes, é difícil conduzi-los, porque estão habituados a autoconduzirem-se”, adianta. A analogia sai-lhe naturalmente. “Por um lado, é aliciante treiná-los, é como pôr o pé no acelerador de um Ferrari, por outro, é um bocadinho difícil tirar o pé do acelerador e travar.” São atletas supermotivados, extremamente dedicados, “absolutamente fora da média”.

O treinador não duvida que essa dedicação vai levá-los longe, muito longe. “São dedicados não só no processo de treino, não só estão fisicamente aptos para a prática da patinagem artística, como têm investido, ao longo de muito tempo, para que consigam voar alto”, afirma. O facto de serem irmãos ajuda. “O assunto do treino transita para casa, para a vida familiar.”

Assim é. Ana garante que ter o irmão como par a tranquiliza. “É mais fácil, percebemo-nos muito melhor, percebemos o que o outro vai fazer.” E a patinagem está em todo o lado, segue-os até casa. Conversam sobre os treinos, analisam vídeos de competições, trocam opiniões. “Podíamos fazer as mesmas coisas, se não fôssemos irmãos, mas facilita.” Pedro dá mais um exemplo. “Quando um está cansado, o outro diz: ‘Vamos embora, vamos correr, vamos fazer isto.’ Puxamos um pelo outro para andar para a frente.”    
 
Mais atletas, mais elas
Fora do ringue são bons alunos. Ana tem 18 anos, está no 12.º ano na Escola Dr. Manuel Gomes de Almeida, em Espinho, tem média de 19 e, neste momento, pensa seguir Medicina. Pedro tem 21 anos, está no quarto ano do mestrado de Engenharia Química na Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP) com média de 16. Ela aprendeu a tocar piano, ele tem o 8.º grau de clarinete.

O desporto começou na Académica de Espinho ainda crianças. Praticaram ginástica rítmica, trampolins, hóquei em patins. “A nossa mãe meteu-nos a fazer tudo”, recorda Ana. Com patins de rodinhas, no hóquei, não passaram despercebidos. Tinham jeito, possibilidade de entrar numa equipa, mas a mãe queria um desporto mais artístico. “A nossa mãe tem uma grande ligação com a parte artística e não descansou enquanto não nos viu num desporto artístico”, relata Pedro. A mãe fez contactos e tratou da inscrição na patinagem artística da Associação Desportiva de Argoncilhe, em Santa Maria da Feira, onde estiveram três anos. Ana tinha sete anos, Pedro dez.

Não era muito cedo para a modalidade. “Normalmente começam com três, quatro aninhos”, diz Ana. De Argoncilhe passaram para Gondomar, começaram a treinar-se com Pedro Craveiro e, nessa altura, deram um salto com participações em competições dentro e fora do país. “Começámos nos campeonatos nacionais muito tarde, eu era cadete, o meu irmão era júnior. Normalmente, os atletas começam em infantis.” A mãe está sempre presente. Os fatos das competições são feitos na costureira, mas é a mãe que trata dos detalhes, coloca os brilhantes, faz os bordados, dá um pontinho onde for preciso.

E o futuro? Ana planeia ser médica, Pedro quer ser engenheiro químico, e a patinagem fará parte das suas vidas. “Quero continuar a competir a este nível mais alguns anos”, responde Pedro. Ana não coloca de parte a possibilidade de ser treinadora ou juíza para avaliar provas e não se desligar da modalidade, que tem crescido a cada ano que passa.

Os dados da Federação de Patinagem de Portugal (FPP) mostram que, nos últimos anos, o número de clubes e de atletas de patinagem artística tem aumentado. Elas são muito mais do que eles e a queda artística das meninas poderá explicar esse desequilíbrio na balança. Em 2013, havia em Portugal 128 clubes de patinagem artística com 4135 atletas, 298 do sexo masculino e 3837 do sexo feminino. Em 2014, os números subiram para 135 clubes, 4483 atletas, 312 masculinos e 4171 femininos. Em 2015, mais uma subida, para 141 clubes e 4831 atletas, 308 do sexo masculino e 4523 do sexo feminino.

“Todos são exemplos e os irmãos Walgode não fogem à regra”, comenta Fernando Claro, presidente da FPP. “Temos muitos campeões e é bom sinal.” Portugal não se tem saído nada mal no palmarés mundial. No ano passado, a federação levou uma pequena comitiva, para não haver muitos custos, de sete atletas que ganharam três títulos mundiais — além do bronze dos irmãos Walgode em pares seniores, o troféu de campeões do mundo em pares juniores veio para Portugal.

Segundo o responsável, a patinagem artística tem evoluído nos últimos dez anos a todos os níveis, em números, em performance. “A quantidade gera qualidade”, refere. A FPP tem investido nos intercâmbios, na componente de formação, o que, na sua opinião, conduz a “valores de excelência”. O trabalho é de todos: atletas, clubes, equipas, técnicos, dirigentes. “E é uma disciplina muito acarinhada pelos pais.” “É um trabalho de muita gente e está no bom caminho.” Como qualquer modalidade, com excepção do futebol, depende dos apoios do Estado, mas Fernando Claro garante que as contas estão equilibradas. “Vivemos com aquilo que temos e os dirigentes desta casa podem dormir descansados.”

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