O abastardamento da língua segundo Pacheco Pereira

Ainda que o amor à língua antiga pudesse impulsionar desejos de retrocesso do português, pode colocar-se esse desideratum como um dos grandes problemas que atingem hoje o país?

Acordos e desacordos na escrita do português
O acordo ortográfico celebrado entre Portugal e Brasil em 1986 levantou acesa polémica há cerca de 30 anos e, pelo visto, continua a despoletar, em Portugal, posições dramáticas contrárias a esse acordo e debates inflamados. Estas posições não seriam de surpreender se os que pretendem que se anule o acordo não o apresentassem como uma questão maior que afeta a conduta dos portugueses ou os princípios do seu funcionamento social. No entanto, com surpresa se verifica que comentadores como o Dr. Pacheco Pereira (P.P.) emitem opiniões sobre o acordo ortográfico que, no mínimo, merecem ser contraditadas por quem trabalha nesta área. Lembre-se, antes de passar à explanação do problema, que a história das reformas e dos acordos ortográficos entre Portugal e Brasil é longa, tendo como início, em 1911, uma sugestão de reforma seguida de um primeiro acordo proposto pela Academia Brasileira em 1931 e replicado pela Academia Portuguesa em 1945. Em 1973 e 1975 foi esboçado um novo acordo que emanou de discussões levadas a efeito num seminário de grande repercussão realizado em Coimbra em 1967. Este foi o ponto de partida para o acordo que surgiu como trabalho básico em 1986. É sobre as reações que tem suscitado que incide este texto.

Disse Pacheco Pereira, usando a autoridade que lhe reconhecemos, que o “novo” acordo ortográfico provoca um “abastardamento da língua portuguesa”. A primeira observação a fazer diz respeito à palavra utilizada: “abastardamento” da língua”? O que significa esta expressão? O dicionário informa-nos que o “abastardamento” trata de “degeneração ou perda da genuinidade”. Considera então P.P que a variação da língua no decorrer dos séculos, ou melhor, a sua evolução é uma degeneração? Em relação a quê? Ao latim vulgar, ao português do século XV ou do século XVIII? Ora ninguém de boa-fé poderia afirmar que deveríamos voltar à forma de falar de há 500 anos, ou mesmo ao século XIX e à época da polémica entre Leite de Vasconcellos e Cândido de Figueiredo precisamente sobre ortografia. Será que algumas destas posições contrárias à mudança se conformam com a imagem nostálgica de um passado que Pacheco Pereira julga “abastardado”? Mas, ainda que o amor à língua antiga pudesse impulsionar desejos de retrocesso do português, pode colocar-se esse desideratum como um dos grandes problemas que atingem hoje o país? Se esta pergunta fosse apresentada para resposta ao Dr. Pacheco Pereira estou convencida de que ele não quereria que a anulação do acordo ortográfico passasse à frente das soluções a estudar para minorar as diferenças entre classes sociais, ou para alterar o modelo económico ou, ainda, para  enriquecer e adequar o modelo educacional para as novas gerações.

A unificação e a simplificação da escrita
Se admitirmos que a anulação do acordo ortográfico não se inclui nos grandes objetivos do atual desenvolvimento do país, vale a pena rever algumas das finalidades que estiveram na base da sua elaboração. Sirvo-me para tal de um artigo publicado em junho de 1986, da autoria de Lindley Cintra, um dos signatários do acordo. Refiro apenas os objetivos que Cintra considerava prioritários: a unificação da escrita produzida em Portugal e no Brasil e a simplificação de diversas grafias. Diz Cintra: “Pode e deve pois considerar-se indispensável e urgente que se chegue a um verdadeiro e eficaz acordo sobre tal matéria, ainda que para isso haja que sacrificar preconceitos e hábitos há muito adquiridos, os quais poderão causar uma inicial e compreensível estranheza perante uma ou outra das medidas a adotar. Além da extrema conveniência de ordem prática, deve pesar-se nesta decisão que, sendo a grafia secundária em relação à oralidade e sendo uma representação sempre meramente convencional desta, não é mais nem menos científica uma grafia simplificada, em que se renuncia a certos hábitos gráficos apoiados numa tradição mais ou menos longa, do que uma grafia dita etimológica, a qual, além disso, para o ser efetiva e coerentemente, exigiria o regresso puro e simples a outros hábitos há muito abandonados.” [1]

No seguimento desta argumentação, o Professor Lindley Cintra dá a conhecer a proposta de simplificação que foi aprovada na reunião de 1986 e que tem como aspeto principal a supressão das chamadas ‘consoantes mudas’. “Com efeito, a vantagem de conservar a ‘letra muda’ para indicar que é aberta a vogal anterior átona é uma vantagem mínima, se considerarmos:

a) – Que ela não compensa o inconveniente, bem mais grave, da disparidade das grafias em Portugal e no Brasil, e que é insensato pretender levar um brasileiro a escrever actor e acção já que, mesmo sem o c ‘mudo’, as grafias ator e ação representam fielmente a sua pronúncia. [a tor], [a são].

b) – Que escrevemos em Portugal padeiro, corar, caveira, credor, geração, quaresmal, sarmento, especar, especular, aguar, aguadeiro, aguaceiro, esfomeado, retaguarda, agachar, relator, dilação, retrovisor e uma infinidade de outras palavras, sobretudo de carácter culto, mas em grande parte generalizadas com vogais átonas abertas, não assinaladas por ‘letra muda’, nem qualquer outro sinal gráfico, sem que isso cause qualquer perturbação.”

Como corolário das palavras de Lindley Cintra quero pôr em relevo o seguinte: A existência de uma ortografia comum não implica que passemos a utilizar a mesma forma de falar mas apenas uma escrita, ou melhor, uma só ortografia. Note-se que num único país como Portugal, por exemplo, existe apenas uma ortografia e, no entanto, ocorrem variações na língua que em certos aspetos estão muito afastadas da norma ortográfica. (basta pensar nos dialetos setentrionais e em palavras como viagem [b]iagem /[v]iagem ou em outras características de variação).

Poderíamos agora acrescentar ao interesse da unificação e simplificação da ortografia do português a feição “económica” da unificação da escrita, integrando nessa unificação os países que têm o português como língua oficial e reforçando assim a perspetiva que esteve na base da criação da CPLP. Um dos principais objetivos desta Comunidade é, por natureza, a preocupação com o enriquecimento da língua portuguesa no campo da ciência e da cultura, e no uso quotidiano dos países que a integram [2]. Num artigo publicado em 2011 eu própria manifestei concordância com este ponto de vista: “Numa ocasião em que tanto se fala sobre problemas da nossa economia, é um er­ro esquecer que o conhecimento e o uso do português constituem uma mais-valia no campo das interações económicas e um dos mais importantes in­vestimentos que cabem à iniciativa go­vernamental e coletiva” [3]. No âmbito desta afirmação cabe a convicção de que a unificação da escrita entre países que usam a mesma língua, e a simplificação da sua ortografia, concorrem para uma mais fácil expansão dos textos escritos nessa língua, neste caso o português.

Ora no sentido de aumentar o prestígio da língua portuguesa e no sentido da sua difusão tem-se avançado pouco em Portugal. Na ausência de estímulos para a criação de meios que reforcem e difundam a língua portuguesa, é fundamental que se proteja a produção em português através de uma política de incentivo à tradução e à realização de obras de base para a formação escolar, e à produção de obras teóri­cas e de aplicação em todos os campos do saber. Estas formas de incentivar a utilização da língua portuguesa são facilitadas pelas mudanças preconizadas pelo novo acordo, e justificam, em Portugal e no Brasil, a existência de uma ortografia que converge para a unificação e para a simplicidade [4].

Língua e ortografia
A frase que motivou este texto – o abastardamento da língua pela aplicação do acordo ortográfico – mostra, por fim, uma confusão entre língua e ortografia, confusão frequente que não é exclusiva de Pacheco Pereira. Na verdade, é de lamentar que quem usa a língua em que aprendeu a falar e que dela se serve como meio de transmitir conhecimentos, reflexões e paixões da alma, possa confundi-la com a sua representação escrita que é o meio em que aprendeu a escrever. A aceitarmos esta confusão teríamos que aceitar também que uma língua que não tem ortografia não existe como língua. Como se sabe, a língua identifica o ser humano e existe em todas as sociedades, enquanto a escrita está restrita a determinados estádios de desenvolvimento de uma sociedade, razão pela qual existem línguas sem escrita tal como há pessoas que não aprenderam a escrever. O domínio da língua na sua forma de expressão verbal contribui para o desenvolvimento das capacidades lógica, afetiva e estética dos indivíduos; coopera na sua tomada de consciência de um adequado comportamento em situação de intercomunicação; possibilita o esclarecimento de pontos obscuros da história; serve a ciência e permite o acesso ao conhecimento psicológico e social do indivíduo. Enfim: a língua está presente em todas as formas da nossa atividade.

A escrita traz outras vantagens à atividade sociocultural, vantagens que estiveram na raiz da sua criação como meio de comunicação e impulsionaram o lugar de relevo que hoje ocupa nos países que a utilizam: ela participa no enriquecimento do indivíduo e da sociedade que a utiliza pela clarificação do pensamento e das emoções; ela viabiliza, pela sua própria natureza, a comunicação a distância no espaço e no tempo; ela permite a manutenção da expressão de ideias e sentimentos, ela colabora na explicitação das formas obscuras do pensamento; ela fornece instrumentos que permitem várias formas de análise da utilização da língua.

Ainda que todos estes aspetos da importância da escrita sejam relevantes, devemos interpretar as reações às mudanças na ortografia de uma língua como o olhar saudoso em busca do passado, da tradição, da raiz. Essa nostalgia é provocada em todos os campos de ação pela quebra da tradição ou pelo afastamento do que julgamos ser a fonte que temos o dever de preservar. Não podemos no entanto furtar-nos à necessidade de viver no tempo atual ainda que saibamos que aquilo por que lutamos no aqui e agora virá a modificar-se no tempo vindouro.

[1] In Expresso, 28 de junho de 1986

[2] Difícil se torna compreender a integração da Guiné Equatorial na CPLP

[3] Ver, por exemplo, o jornal Expresso, janeiro de 2011.

[4] Foi certamente com esta finalidade que se considerou, no Brasil, vantagem na supressão do treme (linguista – linguista) e na eliminação do diacrítico em palavras como idéia – ideia etc.

Professora Catedrática Jubilada da Faculdade de Letras de Lisboa

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