Espelho meu, existe alguém no mundo melhor do que eu?

The Life Of Pablo é o novo disco de uma personalidade excessiva. Kanye West olha-se ao espelho, revisita as diferentes marcas que foi deixando ao longo dos anos.

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Kanye West: arrogante e vulnerável em simultâneo, predador da memória pop e criador da mesma Josh Withers/Corbis

Sabe-se que Kanye West gosta de personalidades excessivas, megalómanas, que arriscam em grande.  Por norma referem-se os nomes de Leonardo da Vinci, Le Corbusier, Steve Jobs ou Picasso. Mas hoje talvez seja mais correcto compará-lo a Francis Ford Coppola, realizador de Apocalypse Now ou O Padrinho, com as suas rodagens atribuladas, orçamentos sistematicamente ultrapassados, atitude ditatorial nas filmagens, divergências com grandes estúdios ou falência da sua própria produtora, mas também pela atitude criativa intransigente e alguns dos filmes mais icónicos desde os anos 1970. 

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PGFM/MediaPunch

Por estes dias West está transformado num Coppola da música. Em tudo o que se envolve existe um misto de paranóia, polémica, prazos excedidos, caos. Os mais cínicos dirão que tudo faz parte de uma estratégia para estar sempre nas bocas do mundo. Até certo ponto, talvez. É nítido que é alguém que se sabe posicionar no ambiente comunicacional dos nossos dias, utilizando os meios à disposição sem filtros, numa relação directa com os muitos seguidores, mas claramente muitas vezes é ultrapassado pelos acontecimentos.

É o que parece estar a acontecer neste momento. Não é apenas a encenação desmedida no Madison Square Garden, em Nova Iorque, que envolveu o lançamento do disco na última quinta-feira, para afinal esvaziar o acontecimento nos dias seguintes com alterações de última hora no alinhamento, excedendo prazos estipulados. Nem as hesitações à volta do título do álbum. Nem as polémicas pessoalizadas. Ou o facto de ter confessado que se encontra com uma dívida colossal – ao que parece motivada pelas incursões no mundo da moda. Ou talvez seja tudo isso.

Dir-se-ia que se encontra em luta consigo próprio. Obcecado por ser o melhor ou à procura de uma perfeição que, inevitavelmente, nunca alcançara. E isso sente-se num álbum que demorou mais de dois anos a ser concretizado. Significa que The Life Of Pablo, o seu sétimo álbum, é um mau disco? Não, longe disso. É um bom disco, sem dúvida, mas disperso. Pela primeira vez sente-se que é uma obra a que falta um núcleo, não conseguindo transportar nada de novo, como se tivesse sido atraiçoado pela tentativa algo sôfrega de se suplantar.

Ou então, simplesmente, quis celebrar-se. Por uma vez não se reinventa. Como escrevíamos aqui há dias, depois de uma primeira audição dos temas já conhecidos, resulta numa espécie de síntese do que foi capaz de fazer até aqui, com traços de electrónica sombria e minimal como em Yeezus (2013), de apoteose como em My Beautiful Dark Twisted Fantasy (2010), de introspecção emocional como em 808s & Heartbeat (2008), de triunfalismo barroco como em Graduation (2007), de canções orquestrais de sedução imediata como em Late Registration (2005), ou de incarnações soul do hip-hop como em The College Dropout (2004).

É como se quisesse mostrar apenas onde se encontra no presente, num álbum onde volta a contar com uma mão cheia de convidados como Chance the Rapper, Kid Cudi, Desiigner, Rihanna, The Weeknd, Ty Dolla Sign, Chris Brown, Frank Ocean, Kendrick Lamar, Young Thug ou Post Malone. Tudo começa com Ultra light dreams, coro gospel, ritmo em câmara lenta, a participação vocal de Chance the Rapper e West a declamar palavras de sentido universal (“pray for Paris / pray for the parents”), numa alusão aos atentados de Novembro em Paris, para de seguida colocar os holofotes nele próprio (“i’m never going to hell / I met Kanye West, i’m never going to hell”), num tema que parece uma oração.  

Em Father strech my hands Pt.1 & 2, outra vez uma batida lenta e um borbulhar electrónico sobre voz alterada digitalmente, com as participações de Kid Cuti e Desiigner, enquanto em Feedback debita por entre um ritmo esquelético, levando-o a interrogar-se sobre a sua sanidade: “name one genius that ain’t crazy”, questiona, como se quisesse justificar dessa forma as convulsões onde se tem envolvido.

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Jennifer Mitchell/Splash News/Corbis

Uma das canções mais lúdicas é Famous, com a voz de Rihanna a instituir o clima de início, com uma alusão a Nina Simone, mas é principalmente o sample de Bam bam, canção reggae de Sister Nancy, que atribuem o balanço certo a um dos temas de impacto mais imediato do disco. Uma canção apimentada pelo verso provocador onde a cantora Taylor Swift é visada (“I feel like me and Taylor might still have sex / I made that bitch famous”). Uma tirada que tem como contexto a relação atribulada entre os dois, desde que West interrompeu o discurso de Swift nos prémios MTV de 2009, mas quando aquela já tinha vendido milhões de discos em todo o mundo, muito longe, portanto, de ser uma ilustre desconhecida como ele quer fazer crer.

Ao longo dos anos sempre teve o engenho de reinscrever pedaços de canções que fazem parte da memória colectiva nos seus temas, atribuindo-lhes novo brilho. O exemplo mais óbvio é o tema de Sister Nancy. Mas há mais. Em FML, com The Weeknd, temos um sample dos Section 25 – banda pós-punk dos anos 1980 – enquanto em 30 hours, é a vez do inovador da música disco, Arthur Russell, ser recordado. Em Fade, com colaborações de Post Malone e Ty Dolla Sign, somos transportados para a Chicago dos anos 1980, quando o dinamismo da música house mais profunda aí emergia, impulsionada por pioneiros como Larry Levan (Mr. Fingers), que também é citado.

É um disco de inúmeras influências (gospel, soul, house, pós-punk, electrónicas) com baladas que tanto podem conter atmosferas algo sinistras, como Wolves, com a voz alterada electronicamente parecendo reflectir sobre a família ameaçada – “cover Nori in the lamb’s wool / We’re surrounded by the fuckin wolves”, trauteia – como desenvolver-se calorosamente com o clima e vibração certos como em Real friends.

E há também esse tema (No more parties in LA)  onde West se encontra com Kendrick Lamar. Dois gigantes da música popular actual. Com pontos de contacto, mas também diferenças. West mais focado sobre si próprio, expondo paradoxos, sendo arrogante e vulnerável em simultâneo, predador da memória pop e criador da mesma, enquanto Lamar sem deixar de partir do seu universo íntimo, tem vindo a tentar perceber as convulsões do presente sociopolítico, acabando por tornar-se nos últimos anos numa das vozes da consciência afro-americana.

Lamar parece ter mais coisas para dizer no presente. Essa é a diferença. The Life Of Pablo tem magníficos temas. É mais uma demonstração do talento de West. Mas é ele a olhar-se ao espelho, apreciando os diferentes Kanye que foram existindo em West ao longo dos últimos anos. “See, i invented Kanye, it wasn’t any Kanyes, and now i look and look around and there’s so many Kanyes”, revela ele em I love Kanye.

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