A indústria musical é menos racista do que a do cinema? Palavra aos Grammys

O autor de To Pimp a Butterfly chega à votação desta segunda-feira com 11 nomeações, incluindo a de melhor álbum do ano.

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Os Grammys são atribuídos esta segunda-feira à noite em Los Angeles VALERIE MACON/AFP

Com 11 nomeações para os Grammys, que são atribuídos esta segunda-feira à noite em Los Angeles, o rapper afro-americano Kendrick Lamar, que lançou em 2015 o seu terceiro álbum, To Pimp a Butterfly, promete ser o protagonista da grande gala da indústria musical, num ano em que a Academia de Hollywood está debaixo de fogo por não incluir um único negro nos 20 actores nomeados para os óscares nas categorias de interpretação.  

O contraste entre a Recording Academy, que atribui os Grammys, e a sua congénere para o cinema, alegadamente menos aberta à diversidade étnica, tem sido salientado por jornalistas e comentadores, e a eventual consagração de Lamar torna as comparações mais apetecíveis, não apenas pelo facto de um disco de hip-hop poder ganhar na principal categoria, a de álbum do ano – o que até hoje só aconteceu duas vezes –, mas também pela fortíssima dimensão política e ideológica das letras do músico, que já afirmou ver-se antes de mais como um escritor e profetizou que os seus textos viriam a ser estudados nas universidades.

To Pimp a Butterfly compete pelo prémio de álbum do ano com Sound & Color, dos Alabama Shakes, Traveller, de Chris Stapleton, 1989, de Taylor Swift, e Beauty Behind the Madness, de The Weeknd.

Não por acaso, um dos temas deste disco de Lamar, Alright, candidato a ganhar o Grammy para a canção do ano, já se tornou o hino oficioso do movimento Black Lives Matter, que combate a recorrente violência policial contra os negros nos Estados Unidos. "My hair is nappy/ My dick is big/ My nose is round and wide/ You hate me, don't you?/ You hate my people/ Your plan is to terminate my culture" [O meu cabelo é encarapinhado/ A minha pila é grande/ O meu nariz é redondo e largo/ Odeias-me, não odeias?/ Odeias o meu povo/ O teu plano é liquidar a minha cultura”], escreve Lamar noutra canção do álbum, The Blacker the berry.

Se To Pimp a Butterfly, a que um crítico já chamou “The Great American Hip-Hop Album”, vencer de facto na categoria de álbum do ano, repetirá uma façanha até agora só alcançada por dois discos de hip-hop: The Miseducation of Lauryn Hill, de Lauryn Hill, em 1999, e Speakerboxxx/The Love Below, do duo OutKast, em 2004. E Lamar tornar-se-á o 11.º artista ou grupo afro-americano a ganhar este prémio, uma lista inaugurada em 1974 com Stevie Wonder, que voltaria a vencer em 1975 e 1977. Seria depois preciso esperar pelos meados dos anos 80, quando Michael Jackson ganhou com Thriller e Lionel Richie com Can’t Slow Down. Seguiram-se, nos anos 90, as três únicas cantoras negras que constam desta lista – Natalie Cole, Whitney Houston e a já referida Lauryn Hill –, e, já no século XXI, os OutKast, Ray Charles e Herbie Hancock.

A poucas horas de se conhecerem os vencedores, o que já ninguém tira a Lamar é o segundo posto nos artistas com mais nomeações num só ano: as suas 11 só foram ultrapassadas pelas 12 que Michael Jackson conseguiu com ThrillerE se perder o prémio de álbum do ano, não será necessariamente em benefício de um músico branco, já que The Weeknd, nome artístico do canadiano de origem etíope Abel Makkonen Tesfay, e os Alabama Shakes, liderados pela vocalista negra Brittany Howard, também estão na competição. The Weeknd concorre ainda noutra categoria importante, a de gravação do ano, com o tema Can’t feel my face.

Dada a proximidade temporal (e geográfica) entre ambas as cerimónias – os Grammys são atribuídos esta segunda-feira, 15, no Los Angeles Staples Center, e a entrega dos Óscares decorrerá a 28 de Fevereiro, no Dolby Theatre de Hollywood –, seria quase inevitável que as nomeações de vários músicos negros para os Grammys reacendesse a polémica em torno da ausência de actores afro-americanos nomeados para os Óscares, uma situação que já se verificara também na edição anterior, e que levou agora o realizador Spike Lee e a actriz Jada Pinkett Smith a anunciar que não estarão presentes na gala. “Como é que é possível que em dois anos consecutivos todos os 20 nomeados para categorias de interpretação sejam brancos?”, perguntou Spike Lee nas redes sociais. 

No entanto, se a estatística mostra que os vencedores de Óscares são, por norma, homens brancos – só uma mulher, Kathryn Bigelow, ganhou o Óscar de realização, em 2010, e 98% dos produtores, 98% dos argumentistas, e 88% dos actores (92% na categoria de actor principal e 99% na de actriz principal) são brancos –, já a ausência de controvérsias raciais nos Grammys está longe de corresponder à realidade.

A influente revista Billboard publicou este mês um artigo em que ouve dois votantes dos Grammys, um dos quais afirma, sob anonimato, que “o conjunto de votantes continua a ser demasiado branco, demasiado velho e demasiado masculino”. Identificada apenas como um compositor e produtor de R&B e música pop na casa dos 30 anos, e que votou já em 17 edições dos Grammys, esta fonte da Billboard reconhece que houve uma evolução “significativa" nos últimos anos, e que o corpo de votantes é hoje mais diversificado, mas diz que “há ainda um longo caminho a percorrer”.

O outro votante ouvido pela Billboard, um manager de 50 anos, queixa-se do alegado desfavorecimento do rock em benefício de outros géneros, diz que é preciso mais gente nova entre os votantes e acha que as nomeações costumam ser mais acertadas nas categorias principais do que nas secundárias, dedicadas a géneros musicais específicos. O que acaba por ser mais significativo é que, defendendo ambos que To Pimp a Butterfly, de Kendrick Lamar, merece ganhar na categoria de álbum do ano, mostram-se os dois convencidos de que o prémio irá na verdade para 1989, da pálida e loira (e bastante mais comercial) Taylor Swift.

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