Europa: os nus e os mortos

Será que, deste modo, o Ocidente está a evidenciar sinais de fraqueza que só fragilizarão a sua desejável capacidade negocial?

As capitais europeias que se vestiram de gala para receber Hassan Rouhani, o Presidente do Irão, e o seu séquito decidiram ocultar a nudez de obras referenciais e indiscutíveis do seu património cultural secular para evitar sobressaltos religiosos e metafísicos nos visitantes. O pudor táctico sobrepôs-se à nudez e a ocultação do génio evitou acentuar a diferença existente entre políticas e políticos, entre Estados, civilizações e culturas.

Miguel Ângelo, que não teve um feitio fácil, sentiu o peso desta nova Inquisição, como se ouvisse alguém segredar-lhe ao ouvido: “Se não cobrimos prudentemente o que deve ser coberto, lá irão menos aviões para Teerão e a liquidez dos nossos cofres será forçosamente afectada”. Na realidade, a arte esteve sempre na vizinhança dos beligerantes e muitas vezes serviu para apaziguar conflitos de proporções inquietantes. Mas, uma pergunta prevalece quando se lida com este tipo de opções. Será que, deste modo, o Ocidente está a evidenciar sinais de fraqueza que só fragilizarão a sua desejável capacidade negocial?

Poucas semanas antes desta visita do Presidente do Irão, o Ocidente assistiu à destruição de partes significativas da cidade de Palmira, símbolo da capacidade que os povos tiveram, há dois mil anos, de se juntarem pela via do comércio e do gosto e de abrirem novos caminhos. Palmira foi uma cidade singular e ainda hoje o muito que resta da sua pujante arquitectura é revelador da natureza dos homens e das mulheres que ali viveram e conviveram com a diferença e com o mundo. É certo que eram outros tempos e e os outros os modos. Mas não é menos certo que esses seres humanos eram, em quase tudo, semelhantes a nós, também no gosto e na forma de lidar com o complexo e sempre desafiante binómio guerra-paz.

O radicalismo islâmico que converte a religião em ideologia totalitária e que, em nome dela, destrói e apaga do mapa os vestígios de civilizações onde não imperava o seu complexo e intolerante sistema de valores também aproveita para fazer bom negócio com aquilo que ameaça destruir, pois sabe, como sempre soube, que há coleccionadores e traficantes que lidam bem, sem ponta de escrúpulo, com a vizinhança do sangue.

Assim, temos de um lado um Islão que não suporta a nudez masculina e feminina, que não dialoga com mulheres, sobretudo se não estiverem convenientemente cobertas, e de outro um Ocidente que, com uma nervosa agilidade, esconde tudo aquilo que lhe possa afectar o negócio. A “real politik” tem regras e tempos certos e não está aberta a debates académicos sobre assuntos que, à partida, já estão resolvidos, muito antes da aterragem dos aviões dos visitantes. Se a nudez pode estragar o negócio, então que agilmente se oculte a nudez e se peça desculpa aos interessados pelo facto comprometedor de ela ter chegado sequer a existir.

E ainda bem que esta política da ocultação do que é embaraçoso não se amplia. Se tal acontecesse, seria urgente apagar do mapa as fronteiras onde não resolve a situação dos refugiados-migrantes e também as capitais onde se decide expulsar os que chegam de longe em busca de pão e tecto e onde se decide cortar apoio humanitário e confiscar bens materiais. Recuando um pouco no tempo, talvez fosse até conveniente eliminar fisicamente o que resta dos campos de concentração nazis, de Auschwitz a Bergen- Belsen, onde morreu Anne Frank, pois nunca se sabe, com a radicalização à direita de países como a Hungria ou a Polónia, se estes “equipamentos” não poderão voltar a ter um trágico uso. Aqui, ficamos divididos entre os nus e os mortos, como no título do célebre romance de estreia do norte-americano Norman Mailer, com a memória trágica da guerra bem presente.

Nesta Europa, de um lado estão os nus e do outro jazem os mortos, adultos, crianças e velhos que o Mediterrâneo não sabe nem quer poupar entre a Turquia e a Grécia.

Poderia até Bruxelas criar, como imperativo categórico, uma comissão para avaliar as políticas de ocultação e para determinar os níveis de risco das várias formas de nudez. Talvez os próprios iranianos, com mais ou menos aviões vindos de França, não conseguissem ocultar a surpresa e sobressalto com as conclusões. O problema é o que o génio dos criadores construiu e materializou e, por outro lado, a pequenez política dos negociadores de hoje, sem perspectiva de futuro e atormentados com o peso moral e civilizacional do passado.

Escritor, jornalista e presidente da Sociedade Portuguesa de Autores

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