Pressionado por Bruxelas, o Governo abdicou de baixar a carga fiscal no OE

É um orçamento a dois tempos: primeiro o que foi entregue em Bruxelas, depois o que saiu das negociações com a Comissão. O segundo tem mais impostos e menos défice, mas também menos crescimento.

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Mário Centeno, ministro das Finanças, durante a apresentação do Orçamento do Estado Daniel Rocha

Foi já bastante tarde na quinta-feira que o Governo fez a sua última cedência a Bruxelas. A planeada redução das contribuições sociais dos trabalhadores com salários inferiores a 600 euros afinal já não vai acontecer. O Estado encontrou uma poupança de 135 milhões de euros, o esforço orçamental exigido pelas autoridades europeias foi atingido e o Governo evitou ter de entregar à Comissão uma versão revista dos seus planos orçamentais. A contrapartida: os portugueses ficaram com mais um motivo para pensar que a carga fiscal e contributiva que suportam voltará mais uma vez a não diminuir em 2016.

A desistência do Governo em concretizar o que restava dos seus planos de redução da TSU é apenas um dos exemplos de medidas adicionais que o Governo introduziu na última semana na proposta de Orçamento do Estado, que entregou esta sexta-feira ao Parlamento. O executivo também subiu o preço do litro de combustíveis em seis cêntimos, o maço de tabaco vai custar mais 10 cêntimos e as contratações de funcionários públicos vão ser mais limitadas do que o esperado.

Estas e outras medidas, saídas das difíceis negociações com Bruxelas, tornaram a proposta de OE num documento com diferenças importantes face ao esboço do OE que tinha sido apresentado duas semanas antes. E um dos efeitos mais óbvios é a diferença na carga fiscal e contributiva que irá incidir sobre as famílias e as empresas.

No esboço do OE, o Governo previa que a soma dos impostos directos, indirectos e de capital com as contribuições para a Segurança Social (a definição normalmente usada para carga fiscal) iria descer de 37,6% do PIB para 36,9%. Seria a primeira descida após vários anos de agravamento e tal seria conseguido através de medidas como a redução mais rápida do valor da sobretaxa do IRS, a descida do IVA sobre a restauração ou a diminuição da TSU para os rendimentos mais baixos.

Agora, na proposta final de OE entregue na Assembleia da República, o mesmo indicador já não desce. A carga fiscal e contributiva irá subir ligeiramente de 37,6% do PIB para 37,9%. Apesar de se manter um alívio significativo ao nível do IRS e do IVA na restauração, entre outros, o agravamento de vários impostos sobre o consumo e da tributação sobre as empresas e a banca compensa esse efeito.

No relatório do Orçamento do Estado, o Governo assinala que a carga fiscal ainda apresenta uma redução, mas tal acontece porque apenas inclui os impostos directos e indirectos, não levando em consideração as contribuições para a Segurança Social e os impostos sobre o capital. Ainda assim, olhando apenas para os impostos directos e indirectos é visível a diferença que uma semana fez à proposta orçamental. No esboço do OE, esses dois indicadores registavam uma redução equivalente a 0,8% do PIB, mas agora, na proposta final, a descida é de 0,2% do PIB.

Na conferência de imprensa de apresentação do OE, esta foi uma das questões colocadas ao ministro das Finanças pelos jornalistas: como é que se vira a página da austeridade com aumentos de impostos? Mário Centeno respondeu que o Governo está a tentar criar condições para que Portugal fique com um nível de fiscalidade “mais justo”.

O ministro assinalou que um maior peso dos impostos indirectos (como o ISP) e menos preponderância dos impostos directos (como o IRS) induz “um crescimento mais saudável”. E defendeu que as opções tomadas pelo Governo nesta matéria têm ainda impactos positivos em questões como o ambiente ou o endividamento das famílias.

Para onde vai e de onde vem o dinheiro do Orçamento

No OE, os impostos directos registam efectivamente uma redução significativa do seu peso na economia, algo que é compensado por um agravamento dos impostos indirectos. E alguns dos impostos introduzidos na última semana pelo executivo constituem um desincentivo ao uso do automóvel e tornam menos atractivo o recurso ao crédito para o consumo.

É também verdade que não foi só com aumentos de impostos que o Governo conseguiu convencer Bruxelas a dar luz verde ao seu orçamento. São prometidos novos cortes na despesa do Estado, através de ganhos de eficiência, e recua-se também na previsão que era feita no esboço do orçamento de uma estabilização do número de funcionários públicos. Agora, aponta-se para uma redução de 10 mil efectivos, resultante da imposição de uma regra de entrada de um funcionário por cada dois que se aposentam.

Olhando para as medidas anunciadas pelo Governo neste OE, verifica-se que, de um lado, há alterações que contribuem de forma directa para um aumento do rendimento de 1450 milhões de euros. Depois, por outro lado, há medidas a nível fiscal que conduzem a uma redução do rendimento de cerca de 1000 milhões de euros e medidas de redução da despesa pública também equivalentes a 1000 milhões de euros.

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É com base nestes números que o Governo aponta para uma redução do défice público de 4,3% do PIB em 2015 para 2,2%. O défice de 2015 sem o efeito negativo excepcional resultante da resolução do Banif deverá ter sido de 3,1%, uma vez que uma operação financeira na empresa Infra-estruturas de Portugal e reembolsos do IVA superiores ao previsto fizeram derrapar as contas e falhar a meta de 3% antes prevista.

O OE aponta também para uma redução do défice estrutural (o défice que desconta o efeito da conjuntura económica e das medidas extraordinárias) em 0,3 pontos percentuais do PIB. Este valor é semelhante aos 0,2 pontos inscritos no esboço do OE, mas o resultado agora apresentado é calculado com base num critério de classificação de medidas extraordinárias mais restrito e já próximo do da Comissão Europeia. Ainda assim, em Bruxelas, afirma-se que o défice estrutural desce ente 0,1 e 0,2 pontos percentuais. A diferença de valores, explicou Centeno, deve-se à “forma como são feitos os cálculos”.

Depois, para além dos resultados orçamentais, há o efeito do OE na economia. Mário Centeno repetiu a ideia de que este é um orçamento que dá um contributo para a aceleração da economia. No entanto, os números mostram que a necessidade de reduzir mais o défice também teve o seu impacto nas perspectivas de crescimento.

O Governo aponta agora para uma variação do PIB de 1,8%, um valor que é superior aos 1,5% do ano passado, mas que fica abaixo dos 2,1% que eram projectados no esboço do OE há duas semanas. No mercado de trabalho, a previsão mantém-se quase inalterada. Acredita-se numa descida da taxa de desemprego praticamente igual à antecipada no esboço do Orçamento e uma criação de emprego que é apenas menor em 9000 postos de trabalho (apesar de se esperar desde logo uma redução de 10 mil efectivos na Administração Pública). 

Ainda assim, apesar desta revisão em baixa, dificilmente o Governo se livrará das críticas de excesso de optimismo de que tem sido alvo. Continua a ser difícil explicar como é que com uma política orçamental mais restritiva (redução do défice estrutural de 0,3 pontos) se consegue uma aceleração face a 2015, quando a política orçamental foi expansionista (aumento do défice estrutural de 0,5 pontos).

Centeno defende que é a combinação de medidas que é mais amiga do crescimento e do emprego, já que se coloca dinheiro nas mãos de quem mais tem propensão para consumir e investir e recusa a ideia de que os pressupostos assumidos para a conjuntura internacional sejam demasiado optimistas.

Depois de concluída a tarefa de entregar no Parlamento um orçamento que passou o teste de Bruxelas, Mário Centeno pareceu suficientemente confiante para desafiar os críticos. “Fragilizado com críticas é algo que nunca me vai ver. É algo a que estou muito habituado", disse.

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