Preparemos as máscaras de gás

O que Vladimir Pankov fez com os 16 milhões de mortos da Grande Guerra? Muito barulho, e três minutos de silêncio. É um espectáculo total, esta jam session russa que agora visita o Porto. Preparemos as máscaras de gás.

Fotogaleria
2h15 de uma monumental encenação da interminável linhagem de soldados desconhecidos
Fotogaleria
2h15 de uma monumental encenação da interminável linhagem de soldados desconhecidos
Fotogaleria
2h15 de uma monumental encenação da interminável linhagem de soldados desconhecidos

A Primeira Guerra Mundial na Rússia? Um silêncio total – bem mais longo do que os intermináveis três minutos que dura em Guerra, a épica jam session em que o SounDrama Studio do encenador Vladimir Pankov (Moscovo, 1975) passa a revista às tropas que perderam a vida (ou pelo menos a juventude) na Europa de 1914-1918 e daí se põe a acenar, com a Ilíada de Homero na mão, ao antepassado comum que todos temos em Tróia.

Não é assunto de que se lembrem muito, os russos, confirma-nos o dramaturgo e encenador (que começou por ser músico, e ainda é, mas já lá iremos) numa entrevista interrompida por email (também já lá iremos), dias antes de fazer os tais três minutos de silêncio, mas sobretudo muito barulho, no Porto, onde Guerra se apresenta sexta-feira e sábado no Teatro Nacional São João. Esmagada primeiro pela Revolução de Outubro, que tirou a Rússia do conflito oito meses antes do Armistício e a atirou para outra frente de batalha igualmente decisiva para o que viria a ser o século XX, e depois pelo infinitamente mais devastador buraco de 1939-1945, a Primeira Guerra Mundial não ocupa grande espaço no inconsciente colectivo: “Os acontecimentos posteriores estão muito mais presentes no nosso espírito – a Segunda Guerra Mundial, que teve consequências devastadoras e provocou gigantescas perdas de vidas humanas. É um assunto muito mais vivo do que a Primeira Guerra Mundial e até do que a Revolução de 1917 que se lhe seguiu”, explica Pankov.

O silêncio ia continuar a durar, portanto, se há dois anos o Festival de Edimburgo não tivesse desenterrado o assunto, sugerindo ao Festival Internacional de Teatro Tchékhov que pusesse na sua agenda o centenário da guerra de 1914-1918. O director do festival, Valery Shadrin, pediu ao SounDrama Studio que “resolvesse o problema” – e Vladimir Pankov decidiu então ver “o problema” como uma questão não exclusivamente russa, convocando para as 2h15 da sua monumental encenação uma interminável linhagem de soldados desconhecidos que começa na Guerra de Tróia e acaba na desoladora “geração perdida”, e irreversivelmente estropiada, que Hemingway fixou em Por quem os sinos dobram (1926). Ou não acaba? É aqui que a entrevista se interrompe, sem que Pankov tenha tempo de responder às questões seguintes, em que lhe perguntávamos explicitamente se o facto de a Rússia ser um actor-chave em alguns dos mais preocupantes conflitos em curso (Ucrânia, Síria…) o implica directamente como artista.

Aparentemente não, Guerra não é um comentário à actual realpolitik de Putin (a pergunta sobre se é dever do artista fazer statements políticos também fica por responder). Em todas as entrevistas que deu aos jornais britânicos quando Guerra se estreou em Agosto de 2014 em Edimburgo, Vladimir Pankov sublinhou que não se queria meter em política – ainda que no caso da Primeira Guerra Mundial, que basicamente reconfigurou mais de metade do mapa europeu e criou um “fenómeno” chamado Médio Oriente, seja impossível separar as águas. A verdade, explica o encenador, é que Guerra não é sobre “aquela” guerra de 1914-1918, mas sobre todas as guerras de que se compõe uma parte substancial da História universal. Toca a todos, portanto, mesmo que neste preciso momento nem todos tenham as mãos sujas: “O ‘tema da guerra’ é como o ‘tema da morte’: mais tarde ou mais cedo diz-nos respeito. Ou porque tem a ver com os nossos avós que morreram na Segunda Guerra Mundial, ou porque tem a ver com os nossos amigos que estão a ser mortos agora…”

Psicodrama
Um piano de cauda, uma grafonola, um lustre caído por terra – Guerra é uma peça sem data, garante Vladimir Pankov, mas toda a iconografia da primeira cena põe o espectador no coração desse século que haveria de começar muito mal, com o naufrágio do Titanic e a mãe de todas as guerras. É Natal, estamos ainda em 2013, mas George há-de entrar neste salão parisiense a marchar, como se já estivesse a caminho da frente, embora a guerra ainda seja só uma figura de retórica (Nikolai, o melhor amigo de George, acha que um bom banho de sangue pode dar à arte a vitalidade que lhe falta, a vitalidade de um poema como a Ilíada).

Fazem eco, os tacões de George, neste Natal em que as aspirações da sua geração ainda estão intactas. São os primeiros sinais exteriores de que vem aí um espectáculo total (logo a seguir há uma grafonola que assobia, como o vento antes da tempestade): não exactamente uma ópera, apesar de haver um libreto, mas uma jam session. Sim, uma jam session, insiste Pankov: cheia do som de dezenas de instrumentos (a começar pelos actores, que trata como matéria essencialmente musical a encaixar na engrenagem de uma banda-sonora capaz de tudo, até de uma versão do Amazing Grace…) e da fúria de dezenas de imagens poderosas (a floresta suspensa de sobretudos militares, o coro das máscaras de gás, a coroa de Natal que é uma coroa funerária…).

Depois do silêncio ensurdecedor de muitas décadas, Pankov acha que devemos fazer barulho por 1914-1918, barulho por todas as guerras. Ao contrário de Nikolai, não acha que uma boa matança seja aquilo de que o mundo precisa; não parece sequer próximo de George, o herói trágico desta encenação, que às tantas encontra no que resta dos soldados rasos, depois da fome, do frio e da desinteria, uma virilidade tão essencial e tão preciosa como um tesouro resgatado de “um naufrágio gigantesco”. Como ideia, diz o encenador ao Ípsilon, “a guerra é completamente inútil”. Sempre foi. E para termos bem noção disso “nada melhor do que invocar estas guerras devastadoras, sobretudo quando já estão distantes de nós”: “A humanidade devia ter bem presente o mal que gerou desde os tempos bíblicos. Só a memória nos pode salvar. Infelizmente, não estamos a aprender com o passado.”

Foto

Este espectáculo, sublinha, é sobre o tremendo absurdo de achar que se pode “ganhar” uma guerra – e sobre o tremendo desperdício de cada vida perdida, que nenhuma peça de teatro, nem nenhum psicodrama, pode curar. Ainda que a catarse, aqui, ocupe o seu lugar bem no centro dos acontecimentos. Também vem dos gregos, como a Ilíada, embora pareça muito do tempo das personagens, muito do tempo do pós-guerra: George morreu, os pais não conseguem enterra-lo, alguém sugere um psicodrama, e subitamente as personagens de Homero estão outra vez vivas, se é que alguma vez tinham morrido (George é uma reincarnação de Heitor, a Primeira Guerra Mundial é uma reincarnação da Guerra de Tróia, e a História é essa armadilha do eterno retorno: eis porquê ler os clássicos).

Mas há outras leituras além dos gregos nas entrelinhas do libreto de Guerra – Pankov lê-os, mas acha que têm os seus limites. Por exemplo a Ilíada: “À medida que os anos passam, o texto de Homero torna-se mais figurativo e mais metafórico. É como uma oração. E é impossível encenar uma oração.” Em parte por isso, em parte para comunicar melhor com o primeiro público do espectáculo, os espectadores do Festival de Edimburgo, a dramaturga do SounDrama, Irina Lychagina, sugeriu que a companhia partisse de um herói local (o George Winterbourne do romance Death of an Hero, de Richard Aldington, ferido na frente ocidental em 1917) e o cruzasse depois com o Heitor de Homero e as experiências descritas por Nikolai Gumilov (um dos mais notáveis poetas russos da primeira metade do século XX, e primeiro marido de Anna Akhmatova) em Notes of a Cavalry Officer.

Torna tudo “mais universal”, para usarmos as palavras de Pankov. É nesse lugar que o SounDrama, um fenómeno bastante particular no contexto do sistema teatral russo (não deve haver outra companhia a funcionar simultaneamente como estúdio de gravação), trabalha desde que surgiu em 2003. A partir da pura potência do som, para lá do texto, para lá da língua, como se o teatro fosse tanto para ouvir como para ver (e, em ambos os casos, uma experiência de opulência: atordoado, Michael Billington, o crítico do Guardian, escreveu que Guerra é “um dilúvio de estilo”). Uma guerra é definitivamente um drama sonoro, o drama sonoro dos obuses e das sirenes, para ficarmos pelos mais gráficos, e o SounDrama quis “recriá-lo”. Foi assim nos bastidores deste espectáculo, é assim sempre, garante o director artístico da companhia, que, com o seu passado fundado na música clássica, no jazz e na balalaica, vê todos os 17 intérpretes em palco, sem qualquer menosprezo, como instrumentos: “A improvisação é constitutiva do nosso método de trabalho. E neste caso o compositor assistiu aos ensaios e criou a banda-sonora com os músicos e com os actores.”

Mas também há limites para uma banda-sonora – como a morte, que antes da Primeira Guerra Mundial nunca se tinha podido imaginar “tão mortífera, um planeta morto dos mortos, parado num tempo e num espaço mortos”. É preciso fazer silêncio por eles. “O silêncio”, argumenta o furiosamente sonoro Vladimir Pankov, “é o momento mais excitante na música”: “Uma oportunidade para encher o espaço com sons outra vez.”

Sugerir correcção
Comentar