Little Girl Blue: Janis Joplin revelada para além do mito

O documentário de Amy J. Berg, narrado por Cat Power, tem sido elogiado pela forma justa com que olha e contextualiza a cantora, recusando o cliché hippie e a glamorização simplista do “sexo, drogas e rock’n’roll".

Foto
Narrado por Cat Power, que lê a correspondência que a cantora trocou com a família, o documentário pode mudar a forma como olhamos para a cantora

“Ela atreve-se a ser diferente”, titulava o jornal da Universidade do Texas no início dos anos 1960. “Anda descalça quando lhe apetece, usa Levi’s nas aulas porque são mais confortáveis e leva a sua auto-harpa consigo onde quer que vá… O seu nome é Janis Joplin”. Sabemos muito sobre os mitos do clube dos 27. Há dezenas de livros, documentários ou ensaios sobre Jimi Hendrix,  Jim Morrison, Brian Jones. Até Amy Winehouse, a última juntar-se ao clube, em 2011, já teve direito a documentário biográfico.

Mas Janis Joplin, que morreu em 1970, aos 27 anos, de uma overdose de heroína, mantém-se a mais misteriosa e menos documentada do clube. Algo que poderá começar a mudar com Janis: Little Girl Blue, documentário estreado o ano passado nos Estados Unidos e que agora chegou à Europa.

Trabalho de sete anos de Amy J. Berg (nomeada para os Óscares, em 2007, por Deliver Us From Evil, sobre o padre condenado por pedofilia Oliver O’Grady), Janis: Little Girl Bue tem sido elogiado pela forma justa com que olha e contextualiza a cantora de Me and Bobby McGee, recusando o cliché hippie e a glamorização simplista do “sexo, drogas e rock’n’roll” para revelar alguém em luta com a América ultra-conservadora da década de 1950, em luta consigo mesmo (as suas inseguranças fundadas na adolescência, a sua tendência autodestrutiva), que só encontrava verdadeira paz na música e que procurava obsessivamente, onde quer que se encontrasse, esse sentimento tão indefinível a que chamamos amor.

Narrado por Cat Power, que lê da correspondência que a cantora trocou regularmente com a família, e usando material de arquivo nunca antes disponibilizado (o Chelsea Hotel em Nova Iorque, os estúdios, Monterey e Woodstock, em actuação e nos bastidadores), Janis: Little Girl Blue pode mudar a forma como olhamos para a cantora a quem não interessava a universidade, um emprego estável ou o casamento. Para quê tudo isso quando ouvir “duas notas” de Billie Holiday e Aretha Franklin “nos revela todo o Universo”?

A rapariga de Port Arthur, no Texas, apaixonada por literatura, F. Scott Fitzgerald em particular, amante da folk e do blues, que sofrera de bullying devastador na escola – “era uma inadaptada. Lia, pintava, não odiava negros”, resumiu -, e que encontraria uma casa na contracultura libertária da Califórnia, tornar-se-ia modelo a seguir na moda, uma cantora reverenciada pela abrangência e expressividade da voz, uma mulher que, em questões de género, deu porventura o melhor exemplo de todos: não havia, por exemplo, feminismo político na sua acção (as feministas de 1960 também não apreciavam particularmente a sua conduta), antes a atitude muito política de se afirmar como indivíduo, sem castrações morais ou de outro tipo. “Não usava soutien, não depilava as axilas, tratava de igual forma homens e mulheres, brancos e negros, mas não se identificava com etiquetas.”, disse Amy Berg à Rolling Stone. “Defendia a ideia de que as mulheres podem fazer o que bem quiserem e que ela seguiria o seu próprio caminho”.

Assim o fez, amando intensa e brevemente homens e mulheres, bebendo whiskey e usando heroína, mostrando-se ambiciosa artisticamente enquanto gravava os quatro álbuns, os dois primeiros com os Big Brother & The Holding Company, os dois últimos a solo, que são a sustentação primeira do mito.

A família de Janis Joplin, a mais velha de três irmãos, reunia-se há algum tempo vários interessados em utilizar os seus arquivos para montar um documentário. Laura Joplin, seis anos mais nova que Janis, explicou ao San Francisco Weekly que, ao ver os breves minutos de uma montagem de imagens que Amy Berg levou à reunião com a família, não teve dúvidas. “Os excertos que escolheu e a forma como os juntou foi tão emocionalmente poderosa em mim que percebi imediatamente que a Amy tinha compreendido a Janis”. Esse será, de facto, o melhor contributo que a realizadora pode dar para a memória da cantora. Permitir que o mistério se dissipe um pouco para que possamos ver Janis Joplin verdadeiramente.

Sugerir correcção
Comentar