As palavras como um combate de boxe

Final do Amor, peça sensação de Pascal Rambert no Festival de Avignon de 2011, chega à Culturgest, em Lisboa, pela mão de Victor de Oliveira. Em palco, um homem e uma mulher socam-se com palavras e fazem da linguagem uma arma tremenda.

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No Japão, não é possível dizer-se “amo-te”. Soa mais a “estou feliz por passar alguns momentos contigo”. “É sempre tudo muito poético”, diverte-se Pascal Rambert, encenador e dramaturgo francês, director do Théâtre de Gennevilliers, uma das vozes mais inquietantes do teatro europeu contemporâneo. Não é acidental que Rambert desembolse, em conversa com o Ípsilon, este exemplo da dificuldade de dizer com rigor aquilo que verdadeiramente quer dizer.

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No Japão, não é possível dizer-se “amo-te”. Soa mais a “estou feliz por passar alguns momentos contigo”. “É sempre tudo muito poético”, diverte-se Pascal Rambert, encenador e dramaturgo francês, director do Théâtre de Gennevilliers, uma das vozes mais inquietantes do teatro europeu contemporâneo. Não é acidental que Rambert desembolse, em conversa com o Ípsilon, este exemplo da dificuldade de dizer com rigor aquilo que verdadeiramente quer dizer.

Final do Amor, peça que estreou em Avignon em 2011 e que agora Victor de Oliveira encena numa versão portuguesa (ao qual dá também o corpo e a voz em palco, ao lado de Gracinda Nave) na Culturgest, em Lisboa, coloca em cena um casal a desfazer-se sem clemência, a desintegrar-se à medida que se ataca mutuamente usando a linguagem como única arma. E Rambert fá-lo da forma mais ostensiva e violenta que se possa imaginar para que a linguagem nunca deixe o centro do espectáculo: criando um diálogo que, na verdade, é composto por dois longos monólogos – ele fala primeiro, ela fica com a derradeira palavra – que acumulam queixas e pancada verbal até se tornarem quase impossíveis, insuportáveis.

A opção é tomada com frieza de cirurgião. Permitir que a troca de acusações entre os dois embarcasse numa dinâmica habitual – “o teatro burguês do século XIX”, chama-lhe Rambert – de pingue-pongue, resposta e contra-resposta, esvaziaria este efeito cumulativo e desgastante provocado pelo uso da palavra e pela escuta em silêncio. Dir-se-ia que, em palco, num cenário despojado, Victor e Gracinda, chamando-se pelos seus verdadeiros nomes, se entregam a um combate de boxe em que, à vez, cada um tenta derrubar o outro por knock out sem lhe encostar a mão numa só ocasião. É uma sucessão de frases-socos, de ganchos de esquerda e uppercuts de direita numa sequência imparável, contra alguém que, do outro lado, não tem defesa possível, recebe cada palavra numa humilhação olhos nos olhos, sem poder fugir. Não há alternativa: é ficar, ouvir, aguentar e, se possível for, ficar de pé até ao fim.

 “O verdadeiro tema da peça é a linguagem”, admite Pascal Rambert. Por isso mesmo, as várias versões de Clôture de l’Amour (no original) que o autor tem montado um pouco por todo o mundo – desde 2011, o texto já foi apresentado na Rússia, nos Estados Unidos, na Grécia, em Itália, no Japão, na Alemanha, em Espanha, na Dinamarca, na Argentina e na China, feito raro para um texto contemporâneo e de uma extraordinária crueza – assentam numa encenação descarnada, sem artifícios nem distracções, criando o menor atrito possível entre o texto cuspido pelos dois actores e o público que é atingido na cara. Rambert confessa não ter nada contra a utilização do vídeo ou de cenários que criem um contexto para o teatro, mas prefere claramente “coisas híper simples e que permitem o máximo de eficácia”. “Aborrece-me muito quando vou ao teatro e há mudanças de figurino”, exemplifica. “No meu caso, creio na eficácia originária do teatro – um espaço real, vazio, a localização onde acontece, se o que acontece se passa naquele espaço onde está a acontecer, numa grande atenção à linguagem e às palavras. E penso se isso é suficiente para produzir um impacto. É interessante alcançar algo com um dispositivo extremamente reduzido, com uma força quase nuclear.”

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Em cena um casal a desfazer-se sem clemência, a desintegrar-se à medida que se ataca mutuamente usando a linguagem como única arma

Victor de Oliveira descobriu o texto ao assistir ao espectáculo. Estava em Avignon porque ia trabalhar em seguida com Stanislas Nordey, actor e encenador, “o homem” na versão original de Clôture de l’Amour. Em Avignon, o frenesim em torno da estreia era tanto que não conseguiu assistir à peça, mas não deixou escapar a oportunidade quando Rambert programou a sua criação para Gennevilliers. Victor, com um percurso de actor desenvolvido em França, para onde se mudou em 1994, trabalhando com Nordey e Wadji Mouawad, por exemplo, viu-se então diante de “um verdadeiro choque, um verdadeiro coup de foudre”, conta ao Ípsilon. “Desde que vi nessa altura fiquei a sonhar com a peça e a alimentar o desejo de a fazer na minha língua materna. Foi a linguagem que me cativou no texto do Pascal, assim como a língua na qual trabalho há 20 anos mas que não é a minha. É pela língua, creio, que mantenho a relação mais forte com Portugal, através dos poetas. E como tudo na peça se dança entre os dois, isso faz com que a língua seja vital.”

Foi na sequência desse entusiasmo que escreveu um email a Rambert apresentando a sua proposta de encenação. A rapidez da resposta levou-o a convencer-se de que Nordey, o elo comum, lhe facilitara o caminho e falara ao autor da sua intenção de traduzir e encenar Clôture em português (o texto é agora lançado na colecção Livrinhos do Teatro, dos Artistas Unidos), sobretudo depois do sucesso tremendo em Avignon que fez de Rambert uma pequena estrela do teatro francês – Répétition, em 2014, de novo com Nordey e Audrey Bonnet (“a mulher” de Clôture) e com Emmanuelle Béart havia de valer-lhe novo coro de elogios e a recente estreia de Argument foi eleita como uma das peças mais aguardadas de 2016 pela revista Les Inrockuptibles. Mas Nordey não disse uma palavra ao autor e vingou a sua disponibilidade total para responder a todas as propostas – lembrando-se do quão difícil lhe fora chegar a programadores no início da sua carreira – e dar o aval a qualquer leitura do seu texto.

“Vi algumas encenações boas da peça, de que gostei, mas aquilo que cada um faz não me diz respeito”, diz Rambert. “Não sou a viúva do Bertolt Brecht que dizia como se devia fazer isto e aquilo, não sou daqueles autores que protegem absolutamente os seus textos, cedo os direitos a toda a gente. É uma atitude filosófica perante as obras. Tenho um filho com 22 anos que estuda Cinema e já lhe disse que se no futuro tiver algum problema – ando tanto de avião que é o meu meio de transporte e nunca se sabe… - deve dar os direitos a todas as pessoas que quiserem fazer as peças. O Victor falou-me nisto há dois ou três anos. E não podia dizer que não a um tal desejo da parte dele.”

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Pascal Rambert, o autor da peça

Sem pontuação
Convidado por Victor de Oliveira, Pascal Rambert voou até Lisboa no início de Janeiro para uma rápida sessão de trabalho em torno da encenação de Final do Amor que ocupa a Culturgest entre 2 e 6 de Fevereiro. Para partilhar algumas das suas ideias, mas sobretudo para não se colocar entre o encenador e os actores – “Se isso acontece, então tomo conta de tudo”, confessa, “porque conheço a minha personalidade e a partir do momento em que começo a trabalhar faço tudo; por isso, o melhor é não me convidarem”. Rambert não impõe cenários brancos e vazios, não obriga ninguém a uma determinada duração, não se opõe a ideias de localização do texto, por absurdo, no Século de Ouro Espanhol, não retira a confiança se o encenador quiser fazer da sua peça uma reflexão sobre o amor, não força os encenadores a separar os dois monólogos com uma canção de Alain Bashung cantada por um coro infantil, como ele faz – em Lisboa, o intervalo do boxe conjugal ficará a cargo de Vítor Rua.

Rambert quer antes que as suas peças sejam objectos abertos e maleáveis nas mãos daqueles que as levam a palco. Tanto assim que “o espírito de abertura” está também aplicado ao nível da construção frásica. Clôture de l’Amour abdica da pontuação ortográfica para que possa caber aos actores decidir sobre o fôlego de cada ataque, o ritmo de cada investida contra o cônjuge, a duração da carga de cada vez que atiram o outro contra as cordas. Tal como o discurso à beira do abismo emocional, como aqui acontece, não se rege igualmente por um escrupuloso respeito gramatical num embate do dia-a-dia. Rambert aponta também para uma peça que mostra aos espectadores, de forma desarmante, o trabalho do actor em cena. “O trabalho do actor é o tempo”, argumenta, “o tempo real e de palco, de escuta do parceiro”. Por isso, Final do Amor é uma peça tanto da palavra quanto da escuta. Para Rambert, trata-se do “desejo de uma nova forma teatral” que vem directamente de Treplev, personagem central de A Gaivota, de Tchékhov. E a forma como essa arte pode encontrar um eco mundial, à semelhança do que diz admirar em Pina Bausch, é algo que o fascina.

Até porque essa partilha do texto por todo o mundo tem levado Pascal Rambert a “mergulhar na profundidade da psique humana com a mochila da língua às costas”. Fala por isso das reacções de um público em lágrimas em França, da ala feminina que se levantou gritando “Bravo!” no início do discurso da personagem-mulher em Itália, do sector masculino russo que não quis ouvir essa mesma tomada da palavra pela mulher e de como em países árabes é difícil imaginar como pode uma mulher levantar a voz a um homem. Isso permite-lhe intuir “como se organiza um povo através da língua”. No final do amor, afinal, talvez comece a filologia.