Escrever na náusea e ser capaz de rir

Histórias de Nova Iorque é crónica íntima do jornalista Enric González. Sobre um lugar onde prometeu não voltar. Voltou. Com a boa dose de cinismo que anestesia a dor e permissão para se reapaixonar.

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Em 1999, publicou Histórias de Londres, sete anos depois Histórias de Nova Iorque, e em 2011, Histórias de Roma. Neles, partilha intimidade, episódios burlescos, histórias da tentativa de identificação com um lugar ao ritmo que vai sendo descoberto

Enric González escreve muitas notas. Em guardanapos, bilhetes de autocarro, pequenos blocos que leva no bolso. E depois perde-as para sempre. O que sai é de memória, um “bom filtro”, porque o que a memória não retém não deve ser assim tão importante. Os três livros que publicou sobre três cidades onde viveu foram feitos através da memória e à distância, quando já não vivia em nenhum desses lugares.

Nasceu em Barcelona em 1959, filho do escritor Francisco González Ledesma. Jornalista, foi correspondente do El País em Londres, Nova Iorque, Washington, Roma e Jerusalém. Além de reportagem, foi publicando semanalmente crónicas e tornou-se conhecido pelo humor e olhar cirúrgico. Há três anos saiu em divergência com a linha do jornal e escreve no El Mundo. Em 1999, publicou Histórias de Londres, sete anos depois saía Histórias de Nova Iorque, e em 2011, Histórias de Roma. Estão todos publicados em Portugal pela Tinta da China. Neles, partilha intimidade, episódios burlescos, histórias da tentativa de identificação com um lugar ao ritmo que vai sendo descoberto, num pulsar muitas vezes desacertado, a muitos ritmos. São livros de uma enorme generosidade literária, com o leitor a sentir-se parte de uma viagem mais do que territorial, de um movimento em direcção a um espaço interior e irrepetível.  

“Em Nova Iorque, que nada sabe da nossa memória sentimental nem do nosso calendário, é sempre hoje e todos os momentos conta”, escreve logo no início de Histórias de Nova Iorque, quando fala da sai intenção de não voltar ali, muitos graças a essa memória sentimental. Talvez seja a mais melancólica e emocionalmente mais ambígua das três crónicas de cidades de que escreveu. Como começou este projecto?
Não houve um projecto. No caso do primeiro, Histórias de Londres, uma editora falou comigo. Eu havia estado em Londres havia uns três ou quatro anos, perguntou-me porque não escrevia um livro sobre Londres onde contasse coisas minhas, na minha relação com a cidade, ridículas ou divertidas. Quando saí de Londres não tinha nenhuma intenção de escrever, mas deram-me uma boa antecipação de direitos.

Que relação tem com cada uma destas três cidades?
Londres foi a primeira cidade onde vivi como correspondente, e há uma relação próxima com Roma, onde volto muitas vezes. Em Londres tive a minha primeira grande responsabilidade e aconteceram-me coisas complicadas, estava lá quando a minha filha ficou doente e morreu, mas também houve bons momentos. Londres é como um primeiro amor e não se pode comparar com nada. Em Nova Iorque vivi de outra maneira. Em Roma sinto-me bem, tem mais a ver com a minha identidade de pobrezinho. É verdade que os hospitais não são muito bons, mas vivendo no centro, podemo-nos permitir tantos pequenos luxos.

Disse que o impulso de escrever sobre Nova Iorque foi a notícia da morte de um amigo. “Não consegui chorar, como não consegui, e ainda não consigo, pela morte da minha filha. É verdade que chorei quando morreu Enough, a minha gata. Devo ter avariado o mecanismo das lágrimas.” É sempre esta ambiguidade a comandar a escrita sobre Nova Iorque?
Claro. É inevitável. Nova Iorque, com a morte de Ricardo [Ricardo Ortega, jornalista espanhol morto no Haiti, em 2004, correspondente da Antena 3 em Nova Iorque, desde 2000], representou uma época muito complicada da minha vida. Mas é uma cidade de que gosto muitíssimo. E quem viveu lá o 11 de Setembro tem uma relação especial com Nova Iorque. É inevitável. Naqueles dias… uf… era uma cidade especial. Não se parecia nada a Nova Iorque, toda a gente fazia o que podia. Mas é pela morte de vários amigos, sobretudo de Ricardo. Quando saí de Nova Iorque pensei que não voltaria nunca. De todas as cidades onde vivi foi a única onde, a determinado momento, não quis voltar.

Por ser demasiado doloroso?
Naquele momento, sim. Soube da morte de Ricardo já estava em Roma e a recordação intromete-se. Se estivesse em Nova Iorque teria assimilado mais facilmente, mas contaminou um pouco.

Como foi o regresso?
Percebi que fora uma loucura dizer que não queria voltar. Era Junho e Nova Iorque em Junho é fantástica. Há quem a prefira em Setembro, mas em Junho, como cantava Frank Sinatra, é incrível. E voltei a apaixonar-me. O regresso acabou com essa nostalgia anterior.

Mas foi em Londres que encontrou o tom para estes livros, um misto de humor e de melancolia…
Não pensei muito nisso. Limitei-me a ir virando a página porque tinha um compromisso com a editora. Mas suponho que escrevo sempre de forma. Tem a ver com o meu modo de ver as coisas. O meu ofício é ser jornalista e é assim que olho para o que me rodeia. Isto foi escrito de forma muito rápida, com a velocidade de um jornalista. O de Nova Iorque escreveu-se numa semana. Sim, pouco mais de uma semana. Sem paragens, nem para dormir nem nada. A escrita para mim tem algo de mecânico, de mecânico muito sofrido. Eu não gosto de escrever. Há muitos jornalistas que gostam. Eu, se pudesse, não escreveria mais. No jornalismo, gosto do trabalho anterior à escrita. De investigar os assuntos, ir aos sítios, falar com as pessoas. Quando é para escrever e contar aos outros, cansa-me. Os três livros, em especial o de Nova Iorque, sabia que só os faria se fosse de um fôlego, de modo a que a atenção não se dispersasse com nada, teria de começar e acabar logo ou não seria capaz. Passava umas 16 horas seguidas a escrever, comendo pouco, fumando muito, vomitando com frequência, tudo muito traumático. Foram todos escritos de uma tirada.

Refere a profissão de jornalista como uma espécie de vertigem.
É por esse automatismo que tem também a ver com a experiência, e de se saber que às vezes há tempo para escrever e noutras não, e é preciso que saia sempre mais ou menos bem, e as coisas resultam mais ou menos parecidas. Há um tom standard que é mais ou menos trabalhado. Assemelha-se a uma composição onde a principal preocupação é que se entenda o que quero dizer. Se acontece ficar bonito, fantástico! Mas a questão fundamental é que se entenda e não aborreça demasiado o leitor. Há quem entenda estas coisas de forma mais artística. Eu limito-me a explicar o que vejo, o que ouço, a ser cronista.

Talvez a crónica seja o género jornalístico mais próximo da literatura. Escreve crónicas há muitos anos, sobre muitos temas, mas sempre foi escrevendo notícias e, sobre tudo isso, diz também neste livro: “É o jornalismo de veteranos: contar em menos de uma hora o que não se sabe nem se quer contar, e fazê-lo mal, mas fazê-lo a tempo. À falta de outras virtudes, valoriza-se a pontualidade.”
(Pausa) Sabe, nestes anos cresci profissionalmente, estive em Londres quando tinha 30 anos, e agora tenho 56. Aprendi que há muitas coisas que se ganham e outras que se perdem, uma é a ilusão. E apesar de tudo o que aprendi dava dinheiro para voltar a ter a ilusão de há vinte anos.

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Fala de uma espécie de cinismo operativo que se adquire, descreve-o também como um “analgésico extraordinário”.
É. Ganha-se cinismo no sentido em que se perde ilusão. Ninguém aprende a não ser através de equívocos, e isso equivale a algum cinismo. Creio que é útil, porque o jornalismo tem de ser feito em doses semelhantes de experiência e entusiasmo.

Há muita gente a escrever sobre as suas relações com cidades.
É verdade. Não sei bem porquê. Suspeito que a primeira razão seja comercial, são cidades que interessam às pessoas; mas por outro lado contam-se experiências e percebem-se vivências. As grandes cidades são uma espécie de entidade quase metafísica, acima dos países de que são parte. Os países estão a perder identidade, que sempre foi bastante falsa. As cidades têm essa identidade; são um bom tema para escrever e ao mesmo para falar de coisas essenciais; são organismos muito interessantes, que reflectem o que somos.

Nas crónicas sobre estas cidades partilha uma intimidade com os leitores, o modo muito pessoal como vive cada uma delas.
Tento escrever como se falasse com alguém que está à minha frente, mais através de sensibilidade do que de artifício. Não digo que seja fácil mas, mais uma vez pela minha profissão, procuro que o que escrevo soe como uma narrativa em voz alta, como se contasse uma cidade a um amigo. Pensei fazer Nova Iorque de outra forma, falando de mais gente além de mim. Os meus editores disseram-me que não. E tinha proposto outro título, Últimos Martinis na Praça. Eram muitas despedidas.

Nunca escreveu sobre a sua cidade, Barcelona. Porquê? 
Fizeram-me várias vezes essa proposta, nunca experimentei, não sei como funcionaria. Conheço demasiado bem Barcelona e não seria fácil ter os olhos de quem descobre uma cidade. Ao descobrir uma cidade estrangeira pode-se contar o processo dessa descoberta. Não sei se poderia contar o que é Barcelona. A Barcelona de hoje não me entusiasma, parece-me superficial, agradável para o turismo e pouco mais.

José Saramago usou a palavra “deslumbramento” para falar da sua escrita depois de ler Histórias de Nova Iorque.
Foi muito amável. Eu não o conhecia, mas pude agradecer-lhe. Estranhei que se tivesse deslumbrado com o que faço.

Se escreve os livros com tanto sofrimento, presumo que não os releia.
Sou incapaz como não sou capaz de ler os meus textos uma vez publicados. Tenho imensa vergonha. Mas vi as traduções portuguesas e sinto outra coisa. Como se o texto não fosse meu e reconhecendo-o. É estranho, não falo a língua, mas posso entendê-la. Em português soa diferente, a novo, e aí acho que nem tudo está muito mal no que fiz. Só controlo as músicas do catalão e do castelhano. O português é outra música.

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