“A música no Ocidente morreu algures no final do século XX”

“Todas as ideias interessantes do futuro virão dos amadores e dos ingénuos”, diz, em entrevista, o documentarista, DJ e radialista Don Letts, que actua esta sexta-feira em Lisboa.

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O inglês Don Letts, com 60 anos, é a estrela do primeiro (This Is) Radio Batida. dr
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Como DJ no lendário Roxy, mostrou aos primeiros punks de Londres as delícias da música jamaicana dr

Como DJ no lendário Roxy, mostrou aos primeiros punks de Londres as delícias da música jamaicana, influenciando bandas como os The Clash. Fez telediscos e documentários sobre o punk, tocou nos Big Audio Dynamite e é radialista. O inglês Don Letts, com 60 anos, é a estrela do primeiro (This Is) Radio Batida, uma série de quatro noites no lisboeta Musicbox. Pedro Coquenão, responsável pelo projecto Batida, convida DJ, produtores e músicos para uma “emissão de rádio feita para dançar”. A noite desta sexta-feira, com início às 23h30, promete ainda um diálogo musical entre Batida, Ivo Costa e Leon Brichard (que terá também um DJ set).

Ao certo o que vai acontecer no Musicbox?
Vou fazer dois alinhamentos diferentes: um para ouvir e outro para dançar. O primeiro reflecte o meu programa de rádio, o Culture Clash Radio [na BBC Radio 6], e a minha diversidade musical. E passarei música jamaicana, reggae com baixos bem vincados.

As suas raízes como DJ.
Sim, tornei-me DJ num clube nocturno punk rock, em 1977. Tocava lá reggae, queria entusiasmar as pessoas com a minha cultura [Letts tem ascendência jamaicana].

Hoje, ser DJ de reggae e dub ainda causa a reacção que as linhas de baixo jamaicanas causaram nos punks que frequentavam o Roxy? A mistura cultural tornou-se comum.
Tudo o que sei é que o baixo liga pessoas com o mesmo quadro mental, ligando-as ao planeta. O baixo é como uma linguagem universal, é como eu falo. O baixo é a prenda que a Jamaica deu ao mundo. A Jamaica introduziu três coisas na música popular: as linhas de baixo, a ideia de usar a mesa de mistura como instrumento e a ideia de rap, com os MC e os toasters [que cantavam ou falavam sobre um ritmo dado pelo DJ].

Conhece o projecto Batida?
Conheci com o álbum Dois, através do meu programa de rádio. Esta noite de sexta-feira será uma espécie de troca cultural: vou a Lisboa entusiasmar pessoas com a minha cultura e espero entusiasmar-me com os sons de Lisboa. Não vou ensinar nada às pessoas, vou ter uma conversa musical.

É o que tem feito estes anos todos?
Sim, porque a partir da conversa vem a inspiração e da inspiração vem a criação. E é isto que faz o meu mundo rodar.

Batida é um dos vários projectos do mundo ocidental que buscam inspiração na música tradicional ou periférica de países mais pobres, nomeadamente de África.
Ouve o que te digo: a música no Ocidente morreu algures no final do século XX. Estou a ser injusto: não está a morrer, mas começou a regurgitar-se a si mesma no fim dos anos 90. Precisa desesperadamente de uma nova fonte de informação e inspiração para ter nova vida. E isso virá de qualquer sítio que não a Inglaterra e os Estados Unidos.

Virá dos locais menos favorecidos?
Conheces o grupo Vampire Weekend? De onde vem o trabalho de guitarra e alguma da percussão? África. Os Rolling Stones estavam a tentar fazer R&B negro, como o que vinha dos Estados Unidos, mas fizeram-no de forma errada e apareceram com a sua própria versão dessa música. É essa a natureza da música.

É fundamental errar?
Algum do melhor rock’n’roll existe por causa de erros.

Mas por que razão esses “erros” não estão a acontecer nos grandes centros da indústria musical, no Ocidente?
Boa questão. O raio das máquinas! Vivemos num estado de confusão. Temos esta ferramenta brilhante, a era digital, a Internet, e somos como crianças numa loja de doces. Precisamos de recuperar o controlo. Algumas das coisas que mais me têm inspirado vêm de pessoas que não têm acesso a estas coisas todas. Acredito que todas as ideias interessantes do futuro virão dos amadores e dos ingénuos.

Mas aprendeu muito nestes anos. Como é que conserva esse amadorismo que diz ser tão necessário?
Muito boa pergunta, acho que não sei responder... Deixa-me pensar... Acho que nunca fui guiado pela técnica, mas sim pela intuição e pelo instinto. Não consigo tocar um instrumento, mas escrevi muitas canções com Mick Jones [nos Big Audio Dynamite]. O que me mantém de olhos abertos? A minha abertura, comparável à das crianças, ao mundo e às suas ofertas. [risos]

Apesar da desilusão com a música ocidental?
Tenho a oportunidade de viajar pelo mundo e ainda há pessoas excitadas pelas possibilidades da música, pessoas que ainda acreditam na música como uma ferramenta para a mudança social – e não como uma banda sonora para vender coisas. Isso mantém Don Letts excitado, o facto de haver gente que ainda acredita nas possibilidades das coisas que fizeram de mim o que sou hoje.

Tem afirmado que os tempos que correm pedem um novo punk.
Desde há 20 anos! Que raio aconteceu? É a confusão da era digital...

Mas o sentimento de “no future” mantém-se no Ocidente. O que falta para esse novo punk?
Tens a cultura que mereces. Possivelmente, as aspirações dos jovens de hoje são muito diferentes das dos jovens quando eu estava a crescer. Entrámos na música para ser contra o estabelecido. Agora, muita gente entra na música para ser parte do establishment. No século XXI, a cultura ocidental tornou-se muito conservadora. Parece que o punk nunca aconteceu. Nos dias do punk dizíamos: “Nunca confies em alguém com mais de 30 anos.” Agora, quando olho à minha volta em Inglaterra, por vezes penso: "Não devia confiar em alguém com menos de 30 anos." Tempos estranhos, tempos estranhos.

Mas nunca tantos miúdos fizeram música, nunca houve tanto controlo dos meios de produção. Trocámos as comunidades físicas – as cenas locais – pelas virtuais, perdendo algo no processo?
Estamos sobrecarregados de informação. A informação é tão fragmentada que se torna inútil. Está a faltar uma experiência colectiva. É por isso que gosto tanto de encontros públicos como o que vou fazer em Lisboa. Qualquer coisa que junte pessoas com o mesmo quadro mental num espaço em que nos olhemos nos olhos é uma coisa bela. Os computadores não têm ideias, as pessoas é que têm. Precisamos uns dos outros.

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