Psicadélicos de todo o mundo, unidos

Cumbia psicadélica? Bollywood psicadélica? África psicadélica? Camboja psicadélico? Tudo psicadélico? O que quer isso dizer? Procura-se resposta nas colectâneas Rough Guide dedicadas ao psicadelismo à volta do mundo, dos anos 1960 aos nossos dias.

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Uma das emissões do Zip Zip, o histórico programa da RTP da década de 1960, teve Almada Negreiros como convidado. Nela se incluía uma peça em que o repórter perguntava a quem passava a opinião sobre reproduções de obras que a equipa levara consigo. Ouvem-se comentários, uns mais divertidos, outros mais envergonhados, até que um jovem de cabelo comprido, muito do seu tempo, exclama: “Isto é psicadélico." 

Décadas depois, no mundo actual da comunicação instantânea, alguém aloja numa plataforma on-line o vídeo de uma banda tailandesa num casamento. Nos comentários ao vídeo, pergunta-se quem são aqueles músicos que que criam um delicioso “som psicadélico”. Olhamos o vídeo com mais atenção. Cadeiras e mesas de plástico dispostas a alguns metros de distância da banda, participantes da boda convivendo e rindo sem prestar a mínima atenção aos músicos. Outro comentário, citado de cabeça: “Vivo há vários anos em Banguecoque e, à chegada, adorava andar pelas ruas para ouvir os sons de bandas como esta em cada esquina. Porque há bandas assim em cada esquina." O imigrado em Banguecoque explicava que aquela música era corriqueira na Tailândia. Nada tinha de psicadélico para os tailandeses.

Pensando no jovem no Zip-Zip ou nos europeus fascinados com o “exotismo” de uma banal banda de casamento do extremo Oriente, diríamos que o psicadelismo está nos olhos de quem vê. Numa altura em que a expressão parece omnipresente no léxico da música popular urbana, fomos investigar o que é isso do psicadelismo, tendo como guia as edições Rough Guide da World Music Network. Brasil, Camboja, Índia, Peru, Colômbia, México, Nigéria, Benim, Mali ou Senegal. Esses países ontem e hoje.

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Em Psychedelic Camdodia abre-se uma janela para o mundo musical prévio à ditadura dos Khmers Vermelhos. Ros Sereysothea é a cantora mais representada

Segundo o dicionário mais à mão, psicadélico é “adjectivo: 1. Que altera a percepção sensorial, causando alucinações: que é relativo ao psicadelismo (ex.: drogas psicadélicas); 2. Que lembra, traduz ou estimula os efeitos próprios do psicadelismo (ex.: ritmo psicadélico, roupas psicadélicas); substantivo masculino: 3. Substância que causa alucinações”. O termo popularizou-se na década de1960, quando as experiências com LSD se massificaram e contaminaram a criação artística do período, a música em particular, mas também outras expressões, e surgiu a par de uma procura, principalmente no mundo ocidental, de novas respostas noutras espiritualidades.

Tendo em conta a descrição, o efeito psicadélico pode ser identificado na música devocional tibetana, com as suas trompas e vozes encantatórias, ou nos bordões das gaitas-de-foles mirandesas, capazes de induzir um estado de transe aos mais cépticos na possibilidade de tal coisa sequer existir. Mas não é disso que tratam Psychedelic Cambodia, Psychedelic India, Psychedelic Bolywood, Latin Psychedelia, Psychedelia Cumbia, Psychedelic Salsa, Psychedelic Africa, Psychedelic Samba e Psychedelic Brazil (distribuídas em Portugal pela Megamúsica).

Editadas entre 2012 e 2015, as compilações pertencem à colecção, associada aos guias turísticos Rough Guide, iniciada em 1994 pelo casal Phil Stanton e Sandra Alayón-Stanton, através da qual se pretendia tornar acessível, em edições a preço reduzido e contextualização simples, a música criada nesse vasto mundo que não é anglo-saxónico. No caso específico do psicadelismo, porém, há inevitavelmente algo de anglo-saxónico. Em cada uma das colecções, ouvimos uma história de encontros e fusões, de polinizações cruzadas em que novos elementos, trazidos pela era eléctrica de órgãos, guitarras ou sintetizadores, contaminam e transformam tradições locais – e avançamos até ao presente, em que a electrónica e as novas possibilidades tecnológicas exercem o seu efeito.

Salsa, cumbia, samba
Algumas das compilações, como Psychedelic Salsa ou Latin Psychedelia, levam longe de mais a abrangência do termo. Ouve-se a música afro-cubana a abraçar instrumentação eléctrica e a mostrar-se atenta ao que Jimi Hendrix ou Santana haviam trazido como inspiração. Joe Cuba, já veterano, canta Psychedelic baby em 1967 e os Flash & The Dynamics mostram a Guajira psicodelica três anos depois, mas é de suor, bom suor sem transcendência, de que aqui se trata.

Nesta América do Sul específica, para descobrir psicadelismo decidamente de acordo com a definição inscrita em dicionário temos Psychedelic Cumbia, maná onde o ontem e o hoje surgem quase indistintos. Os peruanos Juaneco Y Su Combo Perdido en El Espacio, em 1969, e os chilenos Anarkia Tropical, punks em atitude e discurso, hoje, parecem emanar do mesmo lugar: o que nos primeiros são reminescências surf-rock e orgão Vox fervilhante a carregar de colorido futurista a cadência repetitiva, transe feliz, da cumbia, nos segundos são um festim onde motivos melódicos orientais, guitarras apontando à galáxia Hendrix e sintetizadores space-rock enriquecem e dão novas dimensões à antiga tradição musical colombiana  descobre-se esse desejo de criar uma nova camada de significado, a vontade de fazer do espaço da tradição uma possibilidade de reinvenção.

Apesar das décadas que separam as bandas aqui compiladas, o tempo parece ser o mesmo: a ideia de psicadelismo nascido na década de 1960 na música popular urbana ocidental e que contaminou expressões de outras latitudes, assente numa visão de futuro que, mais do que o futuro ele mesmo, se foi cristalizando com o avanço dos tempos como uma realidade de ficção-científica – um futuro alternativo que, por não ter chegado, se tornou intemporal.

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Melodias etíopes fundem-se com jazz e o que eram sons do dia-a-dia ganham aos nossos ouvidos uma exuberância elegante que nos envolve e transporta — em Psychdelic Africa, tal surge representado por Alèmayèhu Eshèté

Não o encontramos no demasiado abrangente Psychedelic Brazil. Tanto engloba rock'n'roll à Byrds, guitarra de 12 cordas em destaque, na magnífica Alérgico a flores, dos Laranja Freak, nascidos anos 1990, como revela uns misteriosos Liverpool, banda de garagem da década de 1960, perfeitamente alinhada com o baptismo. A ideia brasileira de psicadelismo aqui exposta, a melhor, é filha da Tropicália, movimento dolente em que a natureza luxuriante é observada com vagar e o sonho irrompe, sereno e calmante, “contemplando o infinito”, como cantava Maurício Maestro nessa belíssima Agua clara de há quatro décadas – é da mesma natureza e do mesmo tempo do Lula Cortês do arrebatador Nordeste oriental ou desse Marconi Notaro que, em 1973, dava correspondência sónica, em Anthropologica II, ao título do tema de Cortês.

Digamos que tanto Psychedelic Brazil quanto Psychedelic Samba, no afã pela maior abrangência possível, forçam demasiada a barra. É um prazer descobrir José Mauro, em 1970, e a poesia liberta na sua voz de barítono, qual construcção expressionista sobre os ombros de Chico Buarque (Obnoxious é a canção e está em Psychedelic Brazil), e não nos cansamos de elogiar a capacidade inventiva de Amabis, produtor recente de Rita Redshoes, autor do óptimo Trabalhos Carnívoros, onde cabem guitarras fuzz, orquestrações de música de câmara e mil voltas numa canção. Mas se quisermos ver os efeitos que o psicadelismo provoca, se tivermos em mente o cliché “expansão da mente”, então melhor será dirigirmo-nos para o homem que tudo sabe. Tom Zé, pois claro: Uai-uai – Revolta Queto-Xambá 1832, de 2006, é colagem delirante, modernista, de mil pedaços de música brasileira e, se não viajarmos para outro lugar enquanto a ouvimos, algo de errado se passa.

Um novo reino musical
Tendo em conta a profusão na última década de edições dedicadas a garimpar o melhor que se criou no grande continente nas décadas de 1960 e 1970, Psychedelic Africa não é uma surpresa. Confirma-se o que já sabiamos: que da vontade de criar uma identidade moderna, mas de pés fincados na tradição, chegada com a independência das potências coloniais, nasceu música que era ponte entre o excitante criado lá longe por James Brown ou Jimi Hendrix, entre outros, e uma identidade local vincada. Abundam os wah-wahs em ritmo highlife e nasce um outro tipo de funk – ouça-se a Orchestre Poly-Rythmo do Benim. Melodias etíopes fundem-se com jazz e o que eram sons do dia-a-dia ganham aos nossos ouvidos uma exuberância elegante que nos envolve e transporta – em Psychdelic Africa, tal surge representado não pelos mais célebres Mulatu Astatke ou Hailu Mergia, mas por Alèmayèhu Eshèté. Entre a guitarra abençoada de Victor Uwaifo, nigeriano, e os mestres da pan-africana Orchestra Baobab – Nijaay é dos mais belos pedaços de música que já ouvimos –, há todo um mundo de invenção para descobrir, mas a ideia de psicadelismo, nesta compilação, prende-se mais com as ferramentas utilizadas – os inevitáveis wah-wahs e os órgãos vintage  do que com uma verdadeira relação com a expressão.

Nesta volta ao mundo, o porto seguro estará a Oriente. Psychedelic India, Psychedelic Bollywood e Psychedelic Camdodia. Neste último, abre-se uma janela para o mundo musical prévio à abjecta ditadura dos Khmers Vermelhos. Nele, o psicadelismo está no deslocamento do cenário. Cantoras como Ros Seresyothea, a mais representada, ou Pan Ron, adaptam Venus, dos Shocking Blue, ou Bang bang (My baby shot me down), de Sonny Bono, entusiasmam-se com o rhythm'n'blues e com o surf-rock, dão a volta a tradicionais cambojanos como se trabalhassem em bandas-sonoras para filmes de Tarantino por vir e, nesse processo, criam canções onde as luzes parecem faiscar de forma diferente. É realmente outro universo, viagem a um país das maravilhas de garage-rock para salão de baile que desconhecíamos existir (querem mais psicadélico do que isto?).

Enquanto isso, a oeste do Camboja, respondia-se a contaminação com nova contaminação. Nas décadas de 1960 e 1970, a música ocidental enamorou-se pela Índia. E a Índia começou a olhar para a música do Ocidente. Psychedelic Bollywood é um testemunho grandioso, épico, da criatividade que daí nasceu.

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Psychedelic India surge para comprovar como se expandiu um lugar: os australianos Bombay Royale viajam por uma geografia que é, agora, estritamente musical, não física Nik Harrison

Metais em contraponto às notas do órgão, orquestrações bailando sobre a cadência constante das percussões, vibrafones sobre guitarras encharcadas em ácido e vozes como a da diva Asha Bhosle (casada com R. D. Burnam, compositor de destaque com direito a CD extra) a serpentearem sobre o conjunto. Mostra-se que havia algo a retirar das bandas-sonoras de Lalo Schiffrin e Enno Morricone, sem esquecer os trompetes de Burt Bacharach, mistura-se tudo com a riqueza das grandes orquestras indianas e com a sensação de transe induzida por vozes e percussões em rodopio. Nesta música criada para servir as imagens de Bollywood, cria-se um novo reino musical, riquíssimo e indutor de fuga para sabemos lá onde (sabemos apenas que estamos melhor ali, nesse novo lugar).

Psychedelic India surge para comprovar como se expandiu esse lugar. Ali está Ananda Shankar, nos anos 1970, ele que tocou com Jimi Hendrix, que viveu em Los Angeles, a prenunciar futuras viagens electrónicas (o magnífico Dancing drums). Ali estão uns londrinos Sunday Drivers ou uns australianos Bombay Royale a viajar por uma geografia que é, agora, estritamente musical, não física. Talvez seja isso o mais “psicadélico” em tudo isto. Afinal, apesar da diversidade das manifestações, parecemos ter cedido. Lá está o olhar exterior a contaminar a percepção das coisas. O psicadelismo está mesmo nos olhos de quem viu. E vemos. Claramente. Olhando daqui, estamos além. Uma e outra vez.

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