Praia dos medos

O que vejo à minha frente não são hordas de bárbaros, são jovens homens muçulmanos que se sentem envergonhados com o que se passou em Colónia, que me pediram desculpa, que escreveram uma carta pública à chanceler

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Ahmad Masood/Reuters

Quem conta uma história teme por vezes não estar à altura. Contar é dar palavras ao outro, dar memória, recordações, por vezes é uma aventura pessoal que faz com que se vá ao fundo de si, por vezes é como fazer rodar uma chave reticente.

À minha frente na mesa sentam-se três crianças. Nove anos, o rapaz, sete e cinco, as meninas.

Ao meu lado a mãe palra alegremente numa corruptela de inglês e árabe que tento seguir. Quando lê interrogações na minha expressão, o menino Mamoud tenta explicar em alemão, sorrindo muito. Já vi as imagens que o pai me mostra no ecrã do telemóvel tantas vezes. São sobretudo uma enorme paisagem de violência. Quarteirões inteiros arrasados, prédios pontilhados de balas, a vontade de ficar até não suportar mais. A vontade de sobreviver. A essencial diferença destas fotografias é que lhes conheço os protagonistas. Estão à minha frente, tocam-me nas mãos, nos braços, sorriem-me, olham-me. Damasco, Líbia, Grécia, Sérvia,­ Alemanha. De barco, de autocarro, de comboio, a pé. Um êxodo moderno documentado no telemóvel. De todas as imagens a que me impressionou mais foi a chegada à praia na Grécia. Praia de esperança e "praia de todos os medos" como me disse aquele pai.

"Como se pinta o branco?", pergunta o menino. "As outras cores são mais fáceis. Estou cansado de vermelho". Sinto-me a entrar não na vida, mas na dor. Na teia dos medos que nos enreda. A pergunta enigma da criança que tenho à minha frente desconcerta-me. Tento explicar com suavidade como pintar a cor da neve com um lápis branco. "É fria. Parece açúcar". Dentro de mim há uma optimista furiosa que assinou uma espécie de contrato de encantamento com o mundo e são as crianças que mo devolvem de cada vez que duvido, ou me sinto a cair sem rede.

Desço até à sala de percussão, uma das actividades em que participo, para trabalhar o trauma de guerra, é o musicar em conjunto, homens e mulheres, refugiados e voluntários, carregando o tambor. Somos dez, mais o professor, um músico francês que viveu muitos anos em África. O acordo é o seguinte: ensina-se a percussão africana e em troca aprendemos a percussão árabe. Uma vez por mês, no final do "workshop" damos um pequeno concerto perante o entusiasmo geral.

Esqueci-me de dizer que estou no salão paroquial de uma Igreja Católica. Muçulmanos e católicos conversam, falam, abraçam-se. Naquela sala há voluntários jovens e idealistas, gente de esquerda e de direita, juízes, professores catedráticos, domésticas, reformados, franciscanos. O que vejo à minha frente não são hordas de bárbaros, são jovens homens muçulmanos que se sentem envergonhados com o que se passou em Colónia, que me pediram desculpa, que escreveram uma carta pública à chanceler. O que vejo à minha frente tem rosto, sorriso que vem da alma, tristeza que se lê no rosto. O que vejo à minha frente é uma lição de tolerância de que não se fala nos jornais. O que vejo à minha frente são pessoas a cuidar de pessoas. Não estou à altura de contar esta história. Sei apenas que se houver um nome onde o medo termina deve ser este. Amor.

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