Ciclo incompleto

Há em Portugal, como em todos países desenvolvidos, uma luta entre a política como ela é a política como ela deveria ser. Talvez haja no nosso país menos condições para que a política como ela é — taticista, territorial, cartelizada pelas direções partidárias — possa finalmente ser derrotada. Mas cada vez a luta está mais renhida.
 
Não poderia haver mais legítimo representante da política como ela é do que Marcelo Rebelo de Sousa, a partir de hoje Presidente da República eleito, depois de durante décadas ter sido o intérprete das táticas politiqueiras mais conhecido dos portugueses. O futuro dirá que Marcelo se apresenta em Belém. Esperemos que seja um Marcelo imune ao revanchismo da direita contra a atual convergência governativa. Esperemos que não seja um Marcelo tão aquém do que o país hoje precisa.

Sampaio da Nóvoa — o candidato que apoiei e que teve o melhor resultado de sempre para um independente — é, para mim, um extraordinário representante não só de como a política deve ser, mas de Portugal como ele pode ser. Um país mobilizado para as questões do futuro — conhecimento e liberdade. Foi, além disso, um candidato impecável nos princípios e na atitude, no respeito pelos eleitores e na forma como trouxe conteúdo político para estas eleições e as tornou disputadas, ao contrário do que já tinha sido tacitamente decidido pelo comentariado político nacional. Para quem, como eu, apoiou Sampaio da Nóvoa, o saldo só pode ser de muito orgulho pela forma como o nosso candidato dignificou a democracia portuguesa.

Terminou o ciclo eleitoral de 2013-2016, com uma eleição em cada ano: autárquicas, europeias, legislativas e presidenciais. Nas autárquicas, candidaturas independentes de qualidade, algumas das quais ganhadoras, deram um sinal de que os portugueses estavam cansados com uma política partidária que não tinha dado soluções nem alternativas durante os anos de austeridade. Nas europeias, essa frustração transferiu-se para Marinho Pinto. As legislativas produziram até agora o resultado mais inesperado e frutuoso deste ciclo, ao possibilitarem uma governação ancorada à esquerda e sustentada em acordos inéditos com PS, BE e PCP/PEV.

Esses acordos não se refletiram, contudo, nas eleições presidenciais, que já estavam em andamento quando o Governo foi formado. Os partidos que apoiam o Governo mantiveram a linha, quando a tinham: o PS hesitante e desorientado, o BE em busca de um brilharete eleitoral cujo propósito se esgota em si mesmo e o PCP a pagar um preço alto pela manutenção da sua estratégia de sempre. Estes partidos lá foram alertando contra uma vitória de Marcelo que constituiria a desforra da coligação PaF e o terceiro mandato de Cavaco. Mas, na prática, não fizeram nada de novo nem de diferente para que o resultado fosse diferente (claro que vão alegar que mobilizaram o seu eleitorado para uma possível segunda volta: na verdade, essa estratégia só funcionou uma vez em 40 anos, e eles sabem-no). Retórica não faltou; faltou consequência.

Fica a oportunidade perdida, para o país, de ter um Presidente da República oriundo do melhor que tem a sociedade civil, que completaria da melhor forma o ciclo eleitoral e nos representaria em Belém com a mesma dignidade que levou à campanha eleitoral.

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