Isto não é um diário

Há um jogo muito pouco inocente com aquilo a que geralmente se chama ficção, neste livro que inventa o seu próprio género.

Foto
Dir-se-ia que José Vieira Mendes vive a sua escrita como um actor e não como um autor Miguel Manso

Entre o título, Arroios, e o subtítulo, Diário de um diário, vai um mundo de distância: ao apelo realista da referência a um conhecido bairro de Lisboa, responde uma escrita que, contra a evidência das leis canónicas do género a que diz pertencer, o diário, pratica o redobramento e instaura um segundo grau, à semelhança de uma metalinguagem. Conhecemos muito bem o romance do romance, a poesia da poesia, mas o diário do diário não conseguimos, à partida, vislumbrar o que seja. Comecemos então por uma proposição muito geral, mas necessária para a orientação do leitor: José Maria Vieira Mendes levou a sério e com consequências indeléveis o mandamento que diz que a tarefa de um escritor é a de inventar sempre um novo género. A simples menção ao género diarístico enche eventualmente de satisfação os viciados nos pactos servis da literatura, seja o do diário íntimo, seja o da autoficção, da autobiografia ficcionada (um subgénero actualmente muito cultivado). Devemos porém avisá-los de que os espera a decepção se não conseguirem encontrar satisfação em algo muito mais complexo.

O “diário de um diário”, tal como ele aqui se constrói, tem como matéria primeira uma inexistência e uma não-história. O “eu não existo”, o “eu sou apenas um diário”, o “eu não tenho história”, logo, “não aceito que me transforme o presente em pretérito” — todas estas proposições fundamentais e outras de idêntico teor que podemos ler nas páginas de Arroios (datadas, como é próprio de um diário) definem aquilo a que poderíamos chamar uma escrita da destituição. Desde as primeiras páginas, o que fica prometido e se vai cumprindo é que não há uma narrativa — nem de ficção, nem como espelho da realidade. E não haver narrativa significa, entre outras coisas, que não há intriga, não há a narração de uma mudança, da metamorfose das coisas, nem há aquele agenciamento dos factos que geralmente assegura a continuidade do interesse narrativo, o encadeamento romanesco. Este diário é escrito para fazer desaparecer o sujeito, para eliminar o passado e o futuro, para anular a fábula, a história. É certo que existe um Eu, mas a escrita da sua vida quotidiana, a sua bio-grafia diária não tem outra matéria que não seja essa mesma escrita. Trata-se de alguém — uma pura instância de escrita — que repete e recita palavras e frases. E Arroios passa assim a ser um bairro universal, tão universal quanto a Dublin de Joyce, a Praga de Kafka e a Nova Iorque de Bartleby. E evocamos esta célebre personagem de Melville porque ela, na sua opção pelo não-fazer, pelo modo como desarticula toda a economia que obriga, por meio do trabalho, a fazer obra, poderia ser um antepassado deste Eu sem nome e sem história que só existe sob a forma de diário — nasce e extingue-se com ele. A sua opção pelo não-fazer, isto é, pelo fazer nada (que não é exactamente a mesma coisa que nada fazer) está bem patente na maneira como frequenta a biblioteca: olhando para as lombadas dos livros, não por preguiça de ler, mas porque é activamente um não-leitor.

É evidente que um diário que não é um diário de ninguém é uma coisa muito mais complicada que um diário de alguém. Um diário de ninguém é um puro ser de palavras. Esse é o estatuto daquele que, ao longo das páginas deste livro que são como páginas de um calendário, diz Eu. Este ser de palavras nunca diz que vai ao pão sem acrescentar que esse “é um elemento essencial da minha dieta”, e nunca se levanta (e levanta-se muitas vezes) sem dizer que “é um movimento recorrente neste diário”. E quando lhe ocorre, por exemplo, escrever “espairecer”, diz logo a seguir que “é uma palavra desajeitada”. Este diário é o “diário de um diário” exactamente porque não se limita a usar as palavras: está obcecado a olhar para elas. E, como diz um aforismo de Karl Kraus que podia servir de epígrafe a Arroios, “quanto mais se olha de perto uma palavra, mais ela parece olhar-nos de longe”. Desnaturalizar, analisar, pôr à distância o que se apresenta tão próximo: é este o poderoso mecanismo da escrita deste livro. De certo modo, ele diagnostica doenças da linguagem e, na sua forma de “diário de um diário”, é uma terapia contra a doença da ficção romanesca. Se imaginássemos, por absurdo, o que seria um Wittgenstein a aventurar-se pela prosa literária, podemos conjecturar que o resultado seria algo do tipo deste Arroios, onde também há diálogos que fazem lembrar Alice no País das Maravilhas. Dir-se-ia que José Vieira Mendes vive a sua escrita como um actor e não como um autor.

Como se perceberá, estamos aqui muito longe daquela narratividade — a que o nome de “ficção” se sujeitou como emblema — que se instalou na literatura e exerce hoje uma forte hegemonia. Em vez da lógica e dos protocolos da ficção narrativa, temos antes a atitude analítica e crítica. Podemos concluir, sem exercer nenhuma violência interpretativa, que uma das “doenças” que este “diário de um diário” diagnostica é a forma bastarda e serôdia de um tipo de romance que prolifera hoje como um cancro da literatura. Refiro-me tanto à autoficção como às variações do fantasma de Valéry: a marquesa que saiu às cinco horas. Valéry bem sentenciou que não se podia voltar a escrever “la marquise sortit à cinq heures”, mas infelizmente a sua saída tem-se revelado interminável. A marquesa não mora em Arroios. 

Sugerir correcção
Comentar