Cambodja

Entrar na prostituição para tirar quem lá está

Anh e Pham são meias-irmãs e ambas forçadas a prostituírem-se. Droga, violência física e auto-mutilação eram as únicas coisas que conheciam, até um fotógrafo aparecer.

"Anh e eu somos irmãs que nasceram da mesma mãe, percebes?" Ian Flanders
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"Anh e eu somos irmãs que nasceram da mesma mãe, percebes?" Ian Flanders

Em 2012, o fotógrafo australiano Ian Flanders começou o projecto “By the river”, uma série fotográfica sobre mulheres vietnamitas que são forçadas a prostituírem-se. A ideia surgiu quando Ian, já na cidade de Phnom Penh, no Cambodja, se cruzou com uma mulher na rua, perto do rio. A sensação de desespero invadiu-o ao olhá-la directamente nos olhos. “Foi a minha introdução a este mundo selvagem de Phnom Penh. Comecei a caminhar por todas as zonas na capital do Cambodja das quais me disseram para manter afastado”, disse Ian Flanders, em resposta por e-mail ao PÚBLICO. Foi apenas no terceiro dia a vaguear pelas ruas que Ian se atreveu a entrar numa das cabanas de prostituição, com o pretexto de ser um cliente. “Paguei para entrar na cabana, mas o dinheiro não vai para as raparigas mas directamente para as mãos dos traficantes. Isto é escravidão sexual e não prostituição. É um sistema horrível onde mulheres novas têm de trabalhar para pagar uma dívida que nunca acaba aos traficantes”, disse o fotógrafo. Ao entrar numa divisão, com apenas um colchão no chão, Ian conheceu Anh. Através de gestos com as mãos, tentou explicar-lhe que queria fotografá-la. Anh começou a chorar e colocou-se na posição fetal, esperando que Ian fizesse o mesmo que todos os homens, que “abusasse dela”. Mas Ian tentou confortá-la. “Estás bem?”, perguntou. “Foi alguém que te trouxe para aqui?”. Anh não respondeu. O seu inglês era muito básico. Manteve a sua cabeça baixa, perto dos joelhos, a chorar.

Durante três anos, Ian conheceu todas as mulheres e crianças que viviam na cabana, assim como os traficantes. Anh tinha uma meia-irmã, Pham, que começou também a ser fotografada. Ambas receavam que os traficantes descobrissem o que Ian andava a fazer. “Por favor não tires fotografias”, disse Anh uma vez. “Eles vão reparar e vão bater à minha irmã”. Para disfarçar os disparos da câmara, Anh batia com um pente na parede ou fazia bolhas com blu-tak (massa adesiva) e rebentava-as. Várias vezes, o fotógrafo sentou-se com as duas no colchão sujo e não as fotografou. “Deixava-as escreverem e, de certa forma, voltarem a ser humanas”, conta. As palavras escritas à mão foram a base de comunicação entre os três. Ian tirava fotografias com o seu smartphone e enviava para um tradutor na Austrália. No dia seguinte, recebia a tradução e percebia o que as mulheres lhe queriam dizer. “Quando vim para cá, disseram-me que ia trabalhar como assistente de vendas num bar. Só aqui é que percebi que o trabalho seria este e não tive escolha senão aceitar. A minha família é muito pobre e não tem meios de sustentar os mais novos”, escreveu Anh.

Em certos momentos, Ian não conseguia ficar indiferente. Quando viu Pham a vomitar e a agarrar-se ao estômago com uma dor horrível, foi a correr até à farmácia. Ao voltar, a mulher já não estava lá. Tinha sido obrigada a receber um homem, mesmo naquele estado. Após entrar em contacto com uma ONG (organização não-governamental) e mostrar as imagens e textos das irmãs, em Novembro de 2014, as cabanas foram revistadas. Oito mulheres e três crianças foram resgatadas e dois traficantes foram processados. Todas as mulheres receberam acomodação gratuita, acesso à educação, cuidados de saúde e emprego. Mas, esta “oportunidade não é suficiente para quem esteve demasiado tempo acorrentado”. Pouco tempo depois, as mulheres voltaram para a única coisa que conheciam, para os vícios e para o lugar onde a pressão da mudança não existia. Contudo, as três crianças continuam sob os cuidados da ONG, onde recebem uma educação e apoio psicológico. Uma delas tem nove anos e é filha de Anh. “A cadeia intergeracional foi quebrada”, disse Ian que, com toda esta experiência, determinou um rumo diferente para a sua fotografia. “Quero fazer projectos onde a luz brilhe nos espaços mais escuros”.

Sibila Lind

"Quando algo me acontece eles batem-me e não me deixam sair daqui. Se eu pagasse não havia problema. Eles são muito poderosos, não conseguimos lutar contra eles"
"Quando algo me acontece eles batem-me e não me deixam sair daqui. Se eu pagasse não havia problema. Eles são muito poderosos, não conseguimos lutar contra eles" Ian Flanders
"Promete-me que a minha fotografia não vai ser publicada num jornal, caso contrário podem me matar"
"Promete-me que a minha fotografia não vai ser publicada num jornal, caso contrário podem me matar" Ian Flanders
"Tenho saudades dos meus pais. Há três anos que não os vejo. Se tens pena de mim, ajuda-me. Só quero voltar para casa"
"Tenho saudades dos meus pais. Há três anos que não os vejo. Se tens pena de mim, ajuda-me. Só quero voltar para casa" Ian Flanders
"A maior dor da minha vida foi quando o meu marido me deixou com a minha filha porque éramos pobres. Mas esta pobreza foi vontade de Deus logo tenho de a aceitar e resignar-me. Só gostava de ter algum dinheiro para poder viver com a minha mãe e filha"
"A maior dor da minha vida foi quando o meu marido me deixou com a minha filha porque éramos pobres. Mas esta pobreza foi vontade de Deus logo tenho de a aceitar e resignar-me. Só gostava de ter algum dinheiro para poder viver com a minha mãe e filha" Ian Flanders
"Se possível, podes ficar comigo aqui amanhã? Não vai acontecer nada. Teremos tempo para falar. Tenho muita coisa para te contar. Quanto às outras raparigas, elas não vêem as coisas da mesma forma que eu e a Anh, tenho medo que te possam causar problemas"
"Se possível, podes ficar comigo aqui amanhã? Não vai acontecer nada. Teremos tempo para falar. Tenho muita coisa para te contar. Quanto às outras raparigas, elas não vêem as coisas da mesma forma que eu e a Anh, tenho medo que te possam causar problemas" Ian Flanders
No interior das cabanas, nos corredores, foram colocados posteres de flores, bebés, estrelas de cinema, paisagens. Tentam criar uma ideia de paraíso, de fantasia, em contraste com o colchão sujo no chão e a miséria pela qual as mulheres passam
No interior das cabanas, nos corredores, foram colocados posteres de flores, bebés, estrelas de cinema, paisagens. Tentam criar uma ideia de paraíso, de fantasia, em contraste com o colchão sujo no chão e a miséria pela qual as mulheres passam Ian Flanders
"Tenho estado aqui pois pedi dinheiro emprestado para enviar para a minha família. Desde então, não tenho autorização para sair até pagar a dívida"
"Tenho estado aqui pois pedi dinheiro emprestado para enviar para a minha família. Desde então, não tenho autorização para sair até pagar a dívida" Ian Flanders
"Não preciso de nada em termos de felicidade, só gostava de um dia poder viver com a minha mãe e a minha filha. Isso era suficiente para mim"
"Não preciso de nada em termos de felicidade, só gostava de um dia poder viver com a minha mãe e a minha filha. Isso era suficiente para mim" Ian Flanders
"Como é que gostava de ser lembrada? Gostava que me vissem como uma amiga, pois já não tenho coração para amar ninguém"
"Como é que gostava de ser lembrada? Gostava que me vissem como uma amiga, pois já não tenho coração para amar ninguém" Ian Flanders