De cabeça cheia

Screamadelica é um clássico absoluto. Há nele uma felicidade quase palpável, um desejo de comunhão no escapismo e um desejo de presente que a passagem do tempo não dilui.

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Screamadelica soa tão novo e entusiasmante como sempre DR

Aquilo que é verdadeiramente Screamadelica, e não falamos da música em si, mas do impulso que a fez nascer, revela-se não no primeiro CD desta edição especial, que contém o álbum original, nem no segundo, onde encontramos o Dixie Narco EP de 1992, nem no terceiro, composto de diversas remisturas criadas para Loaded, Come together, Higher than the sun e Don’t fight it, feel it. Chegamos ao quarto, o derradeiro, ouvimos o concerto que a banda deu no Hollywood Palladium em Março de 1992 e torna-se claro.

O baixo pulsante, qual variação de Sympathy for the devil, as guitarras eléctricas que, ora libertam faíscas ora aconchegam o movimento das ancas, a batida electrónica e as tablas sampladas, os apitos de rave, uma euforia toda ela luz e sorrisos abertos como no logo smile típico da época. Screamadelica, o álbum editado em 1991 que transformou os Primal Scream de devotos retro da iconografia rock’n’roll (primeiro com os Byrds no horizonte, virando-se depois para aspereza garage) em donos e representantes destacados do seu tempo, era exactamente o que a descrição acima sinaliza, uma fusão do espírito acid-house com os (vivíssimos) espíritos do passado a que Bobby Gillespie e companhia se entregavam com fervor.

Avançamos no concerto, iniciado com Movin’ on up, passamos pela “tripada” versão de Slip inside this house, original dos 13th Floor Elevators – do Texas psicadélico dos anos 1960 para a Madchester entre os 1980 e os 1990 -, e ouviremos um par de baladas clássicas, Gram Parsons e Keith Richards nas proximidades, ouviremos as imaculadas Loaded e Come together, exemplos do novo mundo habitado pelos Primal Scream. Ouviremos mais: aquele “rama lama fa fa fa”, de Rocket reducer nº62 dos MC5, enxertado em Don’t fight it, feel it, uma citação de Don’t call me nigger, whitey, de Sly & The Family Stone, e Whole lotta love, dos Led Zeppelin, a irromperem por Higher than the sun. Para encerrar o concerto chegarão Cold turkey, canção tormento de John Lennon, numa óptima versão em modo Screamadelica, e No fun, o clássico dos Stooges, hino contra o tédio e a letargia, que, naquele preciso momento, era a antítese perfeita da vida dos Primal Scream e, imagina-se, do público que os via.

Um ano depois de se terem deixado contaminar pela vitalidade do acid-house que, como lemos na história oral de Screamadelica incluída nesta reedição, tinha deixado a luz do sol entrar no mundo bafiento da cena musical britânica da época, os efeitos da euforia começavam a passar. Give Out But Don’t Give Up, digníssimo álbum de rock’n’roll clássico, todo ele festa glam, baladas soul e um toque de funk, recolocaria os Primal Scream no lugar que antes de Screamadelica e depois de Screamadelica, seria o seu: representantes convictos e muias vezes inspirados da cultura e estilo de vida rock’n’roll das décadas de 1960 e 1970.

Screamadelica foi um sobressalto na sua carreira, o momento em que, sem perderem a identidade, se reinventaram, completamente sintonizados com o seu tempo – a intemporalidade e o fascínio que a audição deste álbum em estado de graça provocam nasce daí. Para o seu nascimento, duas motivações. “Aquilo que nos levou aos clubes foram as drogas, o ecstasy”, confessa o guitarrista Andrew Innes – e com ela, bendita drogaria, a diluir-se na língua, a banda perdeu o medo e começou a dançar de outra forma. Com essa descoberta, chegou também um desejo de reinvenção levado ao extremo. Quando Innes  entrega a maquete de Loaded a Andrew Weatherall, parte do colectivo de DJs Boy’s Own e actor influente do movimento acid-house, deu-lhe instruções precisas: “Destrói essa merda toda”. Weatherall, artífice fundamental para o que Screamadelica se viria a tornar, foi sábio o suficiente para não destruir tudo. Destacou o bambolear orgânico-digital da batida, descobriu em Wild Angels, filme de 1966, um sample que deu voz a todo o ambiente – “we wanna be free, to do what we wanna do, we wanna get loaded, we wanna have a good time” – e, nessa fusão entre a banda clássica e a sensibilidade moderna, deu o mote para o que se seguiria.

Screamadelica é um clássico absoluto. Há nele uma felicidade quase palpável, um desejo de comunhão no escapismo e um desejo de presente que a passagem do tempo não dilui. A viagem lisérgica de Slip inside this house e de Higher than the sun, a ideia de canção cedendo lugar à música como espaço aberto na pista de dança (“Don’t fight it, feel it”, não é?), o êxtase das vozes gospel de Come together, o desejo de transcendência de Higher than the sun. Rock’n’roll de riffs bem medidos e guitarras wah wah unidos a tablas, linhas de baixo em movimentos circulares, samples de metais ou de pregadores troando no ar e Bobby Gillespie guiando a cerimónia qual xamã deste novo mundo. 

É certo que há algo de redundante nesta reedição, saída meros quatro anos depois de uma outra reedição especial, composta por quatro CD igualmente (coisas da indústria), mas a remistura de Hypnotone Brain para Come together é uma delícia e o concerto de 1992 uma relíquia reveladora. Quanto a Screamadelica, o álbum, soa tão novo e entusiasmante como sempre. 

 

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