A nódoa da corrupção alastra ao ténis

Investigação da BBC e BuzzFeed expõe indícios de manipulação de resultados e apostas ilegais. Tenistas de topo, alguns dos quais estarão a competir no Open da Austrália, envolvidos.

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Tyrone Siu/Reuters

A nódoa da corrupção no desporto alastrou ao ténis no dia em que a emissora britânica BBC e o portal norte-americano BuzzFeed tornaram pública a inacção das autoridades da modalidade face às suspeitas de manipulação de resultados. Depois do futebol, com a FIFA a viver em 2015 um pesadelo que precipitou a queda de Joseph Blatter, e do atletismo, cuja cúpula está minada por esquemas de corrupção para encobrir casos de doping, o ténis vê-se confrontado com indícios de manipulação de resultados e apostas ilegais. A investigação da BBC e BuzzFeed conclui que um grupo de tenistas de topo, no qual se incluem vencedores de torneios do Grand Slam, terá colaborado com redes de apostadores russos e italianos para adulterar resultados.

Os documentos obtidos pela BBC e BuzzFeed apontam para o envolvimento de um núcleo de 16 tenistas numa série de encontros suspeitos ao longo da última década. Estes tenistas, cujos nomes não foram revelados, fariam parte do top-50 mundial e nunca chegaram a ser punidos pelos organismos responsáveis. Entre eles estarão vários vencedores de títulos no Grand Slam. Alguns já terminaram a carreira, mas outros continuam em actividade e mais de metade participará no Open da Austrália, que começou ontem.

A notícia foi recebida em Melbourne com surpresa mas também com reservas. O sérvio Novak Djokovic, número 1 do ranking mundial e que em 2015 conquistou três dos quatro Grand Slams, reconheceu que a manipulação de resultados é um problema no ténis e lembrou que em 2007 ofereceram-lhe 200 mil dólares para perder um encontro no torneio de São Petersburgo, em que acabou por não participar. “Não fui abordado directamente. Alguém falou com uma pessoa que na altura trabalhava comigo. Como é óbvio, rejeitámos imediatamente. Para algumas pessoas, este tipo de ofertas pode ser visto como uma oportunidade. Para mim, é um acto de falta de desportivismo, um crime contra o desporto”, vincou.

“Não sei exactamente o que há de novo. Pelo que vejo, trata-se de nomes antigos. Esse caso foi tratado”, sublinhou um céptico Roger Federer, acrescentando: “Gostaria de conhecer os nomes. Então será algo de concreto, que podemos debater. Foram os próprios tenistas? Ou a sua equipa? Foi antes do encontro? Foi um jogador de pares ou de singulares? É [um assunto] super sério e é super importante manter a integridade do ténis.”

As revelações da BBC e BuzzFeed assentam na investigação feita a um encontro de 2007 entre o russo Nikolay Davydenko (então número 4 do mundo) e o argentino Martín Vassallo Argüello (83.º) no torneio de Sopot, na Polónia. Davydenko venceu o primeiro set por 6-2, perdeu o segundo por 3-6 e abandonou o encontro por lesão quando perdia o terceiro parcial por 2-1. O resultado foi surpreendente e motivou o alerta: a Associação de Tenistas Profissionais (ATP) pediu ajuda aos investigadores da autoridade britânica para as corridas de cavalos, cuja unidade de integridade desportiva era considerada a elite mundial.

Essa equipa passou quase um ano a analisar padrões de apostas suspeitos em 26 mil encontros de ténis e detectou o envolvimento de vários grupos de apostadores russos e italianos na manipulação de resultados. “Em quase 20 anos de trabalho na indústria das apostas, nunca tinha visto um encontro ou uma corrida com cotações tão irrealistas”, afirmou Mark Phillips, um dos elementos da equipa que analisou o encontro Davydenko/Argüello. As conclusões da investigação foram entregues à ATP e, apesar das provas reunidas, os dois tenistas não foram punidos por qualquer infracção.

O trabalho não teve sequência com a criação da Unidade de Integridade do Ténis (TIU), em 2008. “As provas eram muito fortes”, frisou Mark Phillips, recordando os cinco dossiers entregues à recém-criada estrutura. “Tínhamos passado meses a reuni-las e achávamos que a TIU ia ficar entusiasmada. Mas rapidamente se tornou claro que não queriam os nossos conselhos”, lamentou. Desde 2008, foram aplicadas 18 sanções por manipulação de resultados e seis tenistas foram suspensos vitaliciamente – nenhum dos quais ocupava lugares cimeiros no ranking.

O presidente da ATP, Chris Kermode, rejeitou em Melbourne que as autoridades do ténis mundial tenham “suprimido ou deixado por investigar” provas de manipulação de resultados. “A nossa abordagem é de tolerância zero para com todas as formas de corrupção. Não temos uma postura de complacência, mas de vigilância”, acrescentou o mesmo responsável. Em comunicado, o líder da TIU, Nigel Willerton, esclareceu que o programa anticorrupção instituído em 2009 não podia ser aplicado retroactivamente. “Portanto, não foram abertas novas investigações aos tenistas mencionados no relatório de 2008”, indicou.

O ténis representa 20 a 25% do mercado mundial de apostas desportivas online. Durante uma temporada, segundo a agência AFP, são gerados 200 mil milhões de euros em apostas, mas apenas 15% desse valor através do mercado legal. Pela sua especificidade, a modalidade está exposta à manipulação – basta um tenista para corromper um resultado, e a maioria dos tenistas não ganha extraordinariamente. Só em prémios desportivos, Djokovic arrecadou em 2015 21,6 milhões de dólares, mas o número 150 do ranking encaixou apenas 200 mil dólares, dos quais há ainda a descontar impostos e despesas (viagens, alojamento, alimentação, treinador...)

“Até há cinco anos, este tipo de fenómeno restringia-se essencialmente a pequenos torneios, mas assistimos cada vez mais a actos de corrupção em encontros mais importantes”, disse à AFP o analista e ex-responsável da autoridade francesa de apostas Française des Jeux, Christian Kalb, acrescentando: “Se um grupo criminoso pretender branquear várias centenas de milhares de euros através de apostas, facilmente pode colocar 50 mil ou 100 mil euros na mesa para corromper um tenista.”

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