Uma família de hoje a viver numa gruta

Agarrados à primeira infância, Miguel Castro Caldas, Pedro Gil e Raquel Castro colocam-se na posição de olhar para uma criança e tentam recriar o mundo doméstico em que a sua vida decorre. A casa de Terreno Selvagem é um lugar de culpa, de medo e, sobretudo, de protecção.

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Terreno Selvagem assenta arraiais na primeira infância e na vontade de três adultos se posicionarem perante essa idade da qual não têm uma memória fidedigna Filipe Ferreira

Numa sala dividida por um sofá entre zona de refeições e zona de lazer, há uma estante com livros (será importante mais tarde), uma mesa, quatro cadeiras, um candeeiro, uma televisão (será importante mais tarde) e, largada em cima do sofá, uma manta (será importante ao longo da peça). Sentados à mesa, pai e filha tomam o pequeno-almoço. Ele trata de preparar o Nestum exactamente como ela gosta; senta-se e levanta-se para acomodar os seus pedidos, para buscar a colher esquecida, para ir apanhar o termómetro quando ela diz que está “chochinha”. Afinal, tem febre e, chegada a mãe, o dia tem de ser reajustado diante deste facto.

Terreno Selvagem, co-criação dos actores Pedro Gil e Raquel Castro com o dramaturgo Miguel Castro Caldas em cena de 15 a 31 de Janeiro no Teatro Nacional D. Maria II, Lisboa, assenta arraiais na primeira infância e na vontade de três adultos se posicionarem perante essa idade da qual não têm uma memória fidedigna. O que pensaram e sentiram na altura foi já devidamente rasurado ou transformado pelo tempo e o ponto a partir do qual se colocam nesta relação é sempre o de adultos a assistirem a uma infância que decorre à sua frente mas à qual têm também um acesso limitado. “Não nos lembramos da nossa primeira infância e não nos queremos pôr na pele de uma criança porque não conseguimos pensar como uma criança pensa”, reconhece Pedro Gil. “Somos dois actores a brincar aos pais e às mães e aos filhos. E como é a nossa profissão podemos fazê-lo”, ri-se.

Por isso, a filha, em palco, não é representada de facto por uma criança; são eles quem se ocupa de animá-la de gestos e de palavras. Em cada momento, a criança que vemos é a criança que um conjunto de adultos (actores, dramaturgo e público) julga estar ali sentada, “chochinha”, sem poder ir à escola, talvez seguindo a mãe para o trabalho, quiçá deixada com a avó a domar a febre entre canjas, chás e descanso compulsivo diante de desenhos animados.

“A filha viveu naquela casa como escrava”, dirá uma voz-off mais tarde. E recordará a escravidão imposta à pobre criança, obrigada a sair da cama todas as manhãs a uma hora inventada pelos pais, forçada a fazer chichi e a enfiar um prato de qualquer comida pela goela abaixo numa ordem pré-definida, empurrada para uma escola onde ficará durante todo o dia e de onde não poderá em circunstância alguma sair desacompanhada, num encadeamento contínuo de um escrupuloso seguimento de ordens de adultos. “Somos das poucas espécies que são totalmente dependentes dos progenitores”, comenta Pedro. “Isso é bom mas tem o seu perigo – pode ser de mais.” A escravatura, defende ainda o actor, “faz parte de um dos mecanismos deste tipo de histórias”, lembrando Hansel e Gretel, usados como força braçal assim que uma velhinha lhes deita a mão e antes que lhes ferre o dente. Mas em Terreno Selvagem não é na casa de uma velhinha diabólica que tudo se passa; é na casa dos pais. “A nossa escravatura é a nossa vida normal”, diz Pedro Gil.

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Porque, de facto, não é só a filha que se pode queixar de escravatura. Também pai e mãe aparecem aqui vergados pela reprodução do papel disciplinador e a quem cabe a manutenção de todas as rotinas que dão forma a cada dia. “Está muito presente essa questão das rotinas que não foram inventadas por nós, coisas que, no fundo, estamos a reproduzir”, reforça Castro Caldas. Raquel Castro, com a cabeça ainda na mesa do pequeno-almoço, confessa que aquilo que verdadeiramente a inquieta nessa cena inicial é a escravização implicada em “nunca se poder faltar ao trabalho para cuidar de um filho”. O mundo laboral, esse polvo de incontáveis e invisíveis tentáculos, chega a todo o lado. “Temos um estilo de vida que é muito assente num modelo de trabalho, de obrigações e de deveres – às vezes mais do que de direitos”, desabafa ainda a actriz.

3, 2, 1
A relação com o mundo exterior vai-se infiltrando continuadamente na peça que os três construíram a partir do convite dos dois actores a Miguel Castro Caldas. Partindo de improvisações, ideias e estímulos vários, com a primeira infância sempre em fundo, foram levantando “uma viagem do documental para o ficcional, do autobiográfico para o autoficcional”. Até que chegaram a esta casa a que Pedro Gil chama “uma espécie de gruta desta família, terreno selvagem, em que à porta da gruta pode estar o leão”. O leão, no caso, pode aparecer-nos representado enquanto televisão ou rádio, a interferência clara do mundo exterior naquele espaço protegido, os veículos que propagam a ideia de uma ameaça exterior – “tenta-se sempre proteger o nosso ninho, como um animal”, comenta Raquel Castro. A televisão como ecrã em que a violência e a agressividade da vida quotidiana são mostradas sem grande controlo – mas com a ilusão de que tudo acontece longe –, a menos que os atentados de Paris ou as eleições presidenciais portuguesas dêem lugar a um episódio da Princesa Sofia.

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A invasão do espaço doméstico e familiar por parte de um contexto político e social que ajuda a datar Terreno Selvagem – como se frisasse que o texto não quer esconder-se nem fugir da actualidade – dá ao exterior, ao “lá fora”, uma dimensão de imprevisibilidade. Mas a vida em tempos de (pós-)troika está por todo o lado, das contas a 2 mil euros que seriam suficientes para comprar um carro com 60 mil quilómetros a um amigo (uma solução com empréstimo pedido aos pais de um deles, não nos iludamos) ao inquilino estrangeiro que aluga um quarto lá em casa e, aqui e ali, interrompe a vida a 3 ou a 2. Tal como a voz-off, de alguém que assiste ao espectáculo, vai também trazendo à baila citações avulsas da literatura, de Anna Karenina, ao poema “No sorriso louco das mães”, de Herberto Helder, evocações que saltam directamente da estante dos livros para o interior da peça, reproduzindo as ligações estabelecidas entre qualquer espectador (e o seu mapa de referências) e a obra a que assiste.

E do texto ressaltam também “um esquema de culpa”, como lhe chama Castro Caldas, e de “incerteza em relação ao papel de pais – se estamos a fazer bem ou não”, sugere Pedro Gil, uma aparição frequente de medo de abandono (sempre que a criança se cobre com uma manta e finge estar perdida), um desafio constante para que os pais saibam ser 3 (uma família), 2 (um casal) e 1 (um indivíduo).

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