É da portuguesa Bial o medicamento que deixou um homem em morte cerebral em França

Farmacêutica já tinha usado nova molécula em 108 pessoas. Um voluntário está em morte cerebral e três sofreram lesões que poderão ser irreversíveis. Fármaco não está a ser testado em Portugal.

Fotogaleria
Os seis doentes estão internados no Hospital Universitário de Rennes, em vigilância médica permanente REUTERS/Stephane Mahe
Fotogaleria
A ministra francesa da Saúde, Marisol Touraine, sublinhou que se trata de um acidente inédito em França REUTERS/Stephane Mahe
Fotogaleria
A sede do laboratório da Biotrial em Rennes, no Oeste de França, onde os ensaios foram conduzidos AFP/DAMIEN MEYER
Fotogaleria
O fármaco analgésico foi ministrado a 90 pessoas no laboratório da Biotrial REUTERS/Stephane Mahe
Fotogaleria
O director do departamento de neurologia do Hospital de Rennes, Pierre-Gilles Edan, admite que há "lesões que poderão ser irreversíveis" REUTERS/Stephane Mahe
Fotogaleria
As autoridades judiciais francesas abriram um inquérito ao caso REUTERS/Stephane Mahe

Cinco homens estão hospitalizados em França, um deles em morte cerebral e quatro em estado grave, na sequência de um ensaio clínico em que participaram, testando uma nova molécula do laboratório português Bial. É um acidente “inédito” no país, lamentou a ministra da Saúde francesa, Marisol Touraine. Os doentes têm entre 28 e 49 anos e, segundo a governante, terão tomado uma dose mais elevada da substância experimental.

A molécula é produzida pela Bial que destacou que o ensaio em causa já envolveu “108 voluntários saudáveis” em França desde Junho passado, quando foi iniciado, sem notícia de “qualquer reacção adversa moderada ou grave”. A nova substância não está a ser testada em Portugal, asseguraram a Bial e a Autoridade Nacional do Medicamento (Infarmed), em comunicado.

A farmacêutica portuguesa precisou que são “cinco” os participantes no ensaio com o “composto experimental” que apresentam sintomas graves (o sexto internado não exibe sintomas neurológicos) e que todos estão em vigilância médica permanente, no Hospital Universitário de Rennes, no Oeste de França. “Neste momento temos no local vários colaboradores para acompanharem a situação”, acrescenta a empresa, que está a rever cuidadosamente todos os procedimentos.

“O desenvolvimento desta nova molécula na área da dor (inibidor da enzima FAAH) segue desde o início todas as boas práticas internacionais, com a realização de testes e ensaios pré-clínicos, nomeadamente na área da toxicologia”, enfatiza a farmacêutica, lembrando que o ensaio foi aprovado pelas autoridades regulamentares francesas.

Sexta-feira à tarde, em conferência de imprensa, a ministra francesa esclareceu que a substância usada no ensaio clínico não contém qualquer derivado de cannabis, ao contrário que tinha sido afirmado inicialmente pela agência France Presse. “Não continha cannabis nem qualquer derivado de cannabis”, assegurou Marisol Touraine. A molécula testada tem o nome de código BIA 10-2474 e, segundo a ministra, citada pelo Le Monde, é um produto que visa tratar “os problemas de humor e de ansiedade, e os problemas motores, ligados às doenças neurodegenerativas”. 

Ainda de acordo com Marisol Touraine, foi no laboratório do centro de investigação Biotrial (que estava a conduzir o ensaio a pedido da Bial), em Rennes, que o fármaco analgésico foi ministrado a 90 pessoas que foram recrutadas e participaram voluntariamente no ensaio clínico. Este ensaio incluiu 128 pessoas (as restantes tomaram um placebo).

Mas foram os últimos seis participantes nos testes, homens com idades compreendidas entre os 28 e os 49 anos, que começaram a manifestar sintomas de que algo estava a correr mal logo no domingo passado (dia 10), explicou. Os voluntários começaram a tomar a dose alegadamente mais elevada desta molécula a partir do dia 7 deste mês. Outros dois receberam um placebo.

O ensaio clínico estava a decorrer ainda na chamada fase I, ou seja, quando apenas entram nos testes voluntários saudáveis, de forma a perceber-se quais são os efeitos secundários e tóxicos dos tratamentos, e após a fase pré-clínica, em que são experimentados em animais. Nas fases posteriores, os ensaios são alargados e incluem doentes para se testar, além da segurança, a sua eficácia no tratamento das patologias.

O director do departamento de neurologia do hospital de Rennes, onde os seis doentes permanecem internados, Pierre-Gilles Edan, adiantou entretanto que, além do homem que está em morte cerebral, há outros três com “lesões que poderão ser irreversíveis”.  “À chegada do primeiro, pensamos tratar-se de um acidente vascular cerebral (AVC)”, explicou. O estado do doente agravou-se rapidamente “ao ponto de estar hoje num estado de morte cerebral”, lamentou o médico. 

Quanto aos outros pacientes, a situação agravou-se logo nos primeiros dias desta semana, disse, e acrescentou que “quatro têm problemas neurológicos de diferente gravidade”. O outro doente não apresenta sintomas mas está a ser sujeito a uma observação apertada, tendo em conta o que aconteceu com os restantes voluntários. Dos quatro com sintomas, três já estão numa condição “suficientemente severa” para se poder temer um desfecho mais grave.

Problema de dosagem?
Marisol Touraine enfatizou que se trata de um acidente inédito em França, que as causas permanecem desconhecidas e sublinhou que todos os afectados pertenciam ao mesmo grupo de voluntários, a quem o medicamento foi administrado de forma repetida. Ou seja, com uma dose mais elevada.

Foi na quinta-feira à noite que o Ministério da Saúde francês foi notificado sobre os problemas que surgiram na sequência dos testes à molécula, que é administrada por via oral, e todos os voluntários que estavam a participar no ensaio foram entretanto chamados.

Os ensaios clínicos foram interrompidos logo no dia 11, segunda-feira, as autoridades judiciais francesas abriram um inquérito ao caso e a ministra ordenou uma inspecção administrativa à “organização, meios e condições de intervenção” do laboratório na realização do ensaio clínico em causa. A autoridade francesa do medicamento também está já a investigar o laboratório e as circunstâncias em que decorriam os testes.

Questionada pelo PÚBLICO, a Autoridade Nacional do Medicamento (Infarmed), num comunicado, confirma que tomou conhecimento, “através da Agência Francesa do Medicamento, da ocorrência de um acidente grave, num centro de investigação em França, no âmbito de um ensaio clínico de fase I com um medicamento experimental produzido num laboratório nacional”.

No entanto, a nota nunca refere o nome da Bial. O Infamed acrescenta que, de acordo com a agência francesa, “foram hospitalizadas 6 pessoas, encontrando-se uma delas em morte cerebral”. “Esta situação está a ser analisada e acompanhada pelas autoridades francesas que têm partilhado a informação no contexto da rede europeia das autoridades do medicamento. Este medicamento não está a ser utilizado em nenhum ensaio clínico em Portugal”, lê-se na nota.

Do lado da tutela, o ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, garantiu que está a acompanhar “com preocupação” o caso, mas reiterou a sua confiança na Bial. O governante, citado pela Lusa, falava à margem da tomada de posse do novo conselho directivo do Infarmed.

Caso raro mas não inédito na UE
Os problemas graves em ensaios clínicos em fase I na União Europeia (UE) são raros, mas não inéditos. Em 2006, seis voluntários saudáveis ficaram também internados nos cuidados intensivos de um hospital em Londres, depois de serem submetidos a um tratamento experimental, recorda a Reuters, que diz que um dos afectados foi descrito como parecendo o “homem elefante” e que outros perderam parte dos dedos. 

O ensaio levou ao colapso da alemã TeGenero, que estava a desenvolver um tratamento conhecido como TGN1412. A substância entrou entretanto em novos ensaios para a artrite reumatóide e revelou-se promissora em doses inferiores às originalmente pensadas. 

Cinco anos antes, uma jovem de 24 anos, Ellen Roche, morreu nos Estados-Unidos, quando participava num ensaio clínico de um medicamento experimental contra a asma (hexamethonium), conduzido pela Universidade Johns Hopkins.

“Há um risco inerente à exposição de pessoas a qualquer componente novo”, reconheceu à Reuters o especialista Daniel Hawcutt, professor de farmacologia na Universidade Britânica de Liverpool. Contudo, de acordo com o docente, a Agência Europeia do Medicamento impõe normas muito apertadas para eliminar o risco ao máximo, o que não invalida que este seja um trabalho “altamente especializado”.

Em Portugal, o último balanço do Infarmed (de 2015) indicava que estavam então a participar em mais de 350 ensaios clínicos cerca de 12 mil pessoas, principalmente nas áreas da oncologia, doenças do sistema nervosos e doenças infecciosas. 

As novas moléculas só são oficialmente classificadas como medicamentos depois de testadas e aprovadas pelas autoridades competentes.

 

Sugerir correcção
Ler 108 comentários