No centro de tudo, ainda e sempre, David Bowie

Ao longo da sua discografia de cinco décadas, David Bowie foi homem de muitas máscaras. Descobri-lo é reuni-las todas e pasmar com a diversidade: "Ch-ch-ch-ch-changes".

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Dois anos antes de anunciar o abandono dos palcos, durante uma entrevista em que falara de George Orwell e Anthony Burgess, dois escritores que citou directamente na sua obra, em que referira a poesia de Baudelaire, a pintura de Matisse ou textos de Martin Amis, o jornalista do New York Daily News perguntou-lhe se se via como um intelectual. Bowie fugiu da conotação e respondeu como só Bowie poderia responder. “O que tenho é uma curiosidade malévola. É ela que guia a minha necessidade de compor e é, provavelmente, o que me leva a olhar para as coisas de uma forma um pouco enviesada. Tenho realmente a tendência para assumir uma perspectiva diferente da da maioria das pessoas."

A obra de David Bowie, e a relevância dessa obra, faz-se realmente da especificidade do olhar. Bowie foi (é) revolucionário precisamente pela capacidade de construir, disco após disco, década após década, um novo lugar: a curiosidade levava-o a olhar atentamente tudo o que o rodeava, mas o reflexo que nos devolvia era invariavelmente uma outra coisa – ao longo de mais de cinco décadas, foi essa a medida do seu génio.

Major Tom, Ziggy Stardust, Alladin Sane, Halloween Jack, Thin White Duke foram algumas das suas máscaras. Todas reunidas constroem um novo rosto: o de Bowie ele mesmo – “ainda que fosse muito tímido, descobri que podia subir a palco se tivesse uma nova identidade”, referiu na entrevista supracitada. “Depois", acrescentava, "aprendi a descartar essa identidade para me tornar real, talvez não real no sentido de Bruce Springsteen, mas pelo menos uma aproximação à realidade no palco”.

Musicalmente, Bowie fora desde muito cedo homem em construção, seguindo inicialmente a rota rock’n’roll com saxofone de plástico debaixo do braço, incerto, como dizia, de querer ser Elvis Presley ou John Coltrane. Depois, entusiasmara-se com a elegância dos mods, cujo visual adoptou, e, sempre com a ideia de cena muito vincada, estreou-se em longa-duração com um álbum em que pretendia ser cantor de music-hall, rosto de singles pop, cavalheiro do psicadelismo. Não podia, porém, ser tudo ao mesmo tempo – nunca o veríamos realmente se assim fosse. Havia que apurar o radar.

Quando inventa a personagem Ziggy Stardust, o ser alienígena e andrógino caído na Terra, transforma decisivamente a década de 1970 – Major Tom, o de Space oddity, o seu primeiro grande sucesso, sofrera uma metamorfose e abandonara o silêncio espectral do cosmos para se apresentar ao mundo, para agir no mundo. Em 1971, um ano antes de apresentar Ziggy, editara no álbum Hunky Dory aquela que acaba por ser a canção-resumo da sua atitude criativa. Changes, obviamente: “Turn and face the strange ch-ch-ch-ch-changes”.

Carne e artifício

Bowie não chegara primeiro. Quando somos apresentados a Ziggy Stardust, já Marc Bolan liderava os seus T. Rex Reino Unido fora, lantejoulas faiscando em palco, olhos iluminados por maquilhagem, anunciando a boa nova do glam-rock – a energia primordial do rock’n’roll recuperada e transformada em pleno período de revolução sexual, e na ressaca dos sonhos “sérios” da contracultura hippie. Bowie percebeu: o que em Bolan era intuição, com Bowie tornou-se um universo construído de raiz, tão reflexo do seu tempo como criador desse mesmo tempo (sempre hábil a escolher colaboradores, teve a seu lado Tony Visconti, parceiro de Marc Bolan na definição do glam dos T. Rex).

Som e imagem, sonhos rock’n’roll feitos carne e artifício  tão cativante e surpreendente que, em Inglaterra, toda a geração que faria depois o punk, o pós-punk, a new-wave, o synth-pop e os Novos Românticos sabe onde estava no dia de 1972 em que o alienígena Ziggy se revelou à nação no programa Top of the Pops. Ziggy não poderia viver para sempre. Temo-lo ainda em Alladin Sane, editado em 1973, mas não poderíamos tê-lo muito mais tempo.

Nada em David Bowie era estático e a sua carreira discográfica é disso reflexo. Quando um jornalista do New Musical Express lhe perguntou, estávamos em 1978, qual a sua grande contribuição para o rock’n’roll, respondeu: “Sou responsável pela inauguração de toda uma nova escola de pretensiosismo." O humor fica-lhe bem, mas, neste caso, talvez seja melhor recorrer a uma citação de outrem para explicar o seu impacto. “Bowie existiu para que todos os desajustados aprendessem que a singularidade é uma coisa preciosa, mudou o mundo para sempre” – disse-o o realizador Guillermo del Toro em reacção à morte de Bowie.

Em expansão

Ziggy morto, o homem que lhe deu corpo prosseguiu. Universo em expansão: na homenagem aos que o antecederam, como Syd Barrett, os The Who, os Kinks ou os Them, no álbum de versões Pin Ups, o último gravado com os Spiders From Mars, e no Diamond Dogs que dá vertigem glam-rock (Rebel rebel explica tudo) ao pesadelo distópico de 1984, a obra de George Orwell em que se inspirou.

Estávamos em 1974, quase a meio da década de todos os excessos, e Bowie tinha muito a fazer até ao seu final. Reinventou-se enquanto Thin White Duke, o homem de fato e penteado clássicos, glam deitado para trás das costas, que se renderia às maravilhas da soul e do funk americanos – uma soul e um funk só dele, como registado em Young Americans, álbum de 1975. Alimentando-se, diz a lenda, a uma dieta de cocaína, leite e pimentos, começava, entre o delírio e a paranóia induzidos pelo consumo heróico da primeira, a preparar caminho para uma das reinvenções mais celebradas da sua carreira.

Station to Station, de 1976, foi a ponte – a soul reinventada do período imediatamente posterior a desaguar no universo mecânico, electrónico, que aventureiros alemães construíam no centro da Europa (krautrock, chamaram-lhe). Depois, com Brian Eno, o mago dos sintetizadores e maquinaria avulsa com os Roxy Music, o pioneiro da ambient music, exilou-se em Berlim para criar uma trilogia que se mantém como um dos momentos altos da história da música popular urbana –  Low e Heroes, ambos editados em 1977, e Lodger, lançado em 1979 e gravado já longe da Alemanha, mas ainda a sob o seu efeito.

Mais uma vez, David Bowie descobria, olhando atentamente em redor, onde fervilhava algo de novo e transformador e incorporava-o em si para se enriquecer – e para nos enriquecer. O carácter arrojado da sua intervenção, qualidade que é transversal a toda a sua obra, está na forma como trazia para o centro da cultura popular a linguagem das margens, dando-lhe um sentido apreensível e aberto a todos. Low, Heroes e Lodger são compostos de experimentação séria e consequente, sem cedências, mas são também os álbuns onde encontramos um single imaculado como Heroes (com Robert Fripp, ex guitarrista dos King Crimson a contribuir decisivamente para o resultado final).

De acordo com o zeitgeist

Os anos 1970, a década que David Bowie criou, estavam a chegar ao fim. Com Scary Monsters (1980) e canções nele contidas como Ashes to ashes e Fashion prenunciou a sofisticação pop que se seguiria. Com Let’s Dance, três anos depois, tornou-se superestrela pop: percebeu o sinal dos tempos e, ele que sempre soubera pôr-se em cena de acordo com o zeitgeist, surgiu todo-poderoso no coração da geração MTV.

Nos anos 1990 ainda o vimos tentar sintonizar-se com o fulgor contemporâneo em Outside ou nesse Earthling criado sob o signo do então emergente drum’n’bass – foi editado em 1997 e era mais interessante enquanto conceito do que na sua concretização. Reality, o último álbum editado antes do anúncio da reforma, já mostrava alguém que, apesar de todas as mudanças e de todas as máscaras, conseguia cristalizar uma linguagem pop inequivocamente sua. Dez anos depois, o álbum surpresa The Next Day parecia um encerrar de ciclo. Bowie a revisitar-se a si próprio antes de seguir em frente. E agora Blackstar.

Imaginamo-lo discreto à mesa de um pequeno clube nova-iorquino. Sentado a um canto, discreto, ouve atentamente o jazz livre, sabedor do passado mas desejoso do futuro, da banda que lhe haviam recomendado. Ouve, perscruta, encontra. Foi com eles, com os músicos liderados pelo saxofonista Donny McCaslin, que preparou o seu último manifesto. “In the center of it all”, ouviríamos meses depois, estonteados, surpreendidos novamente, sugados para o novo lugar que procurara para si próprio. O último. Estávamos ali em 2015, “in the center of it all”. Aos 68 anos, 69 ao virar da esquina, encontrávamos Bowie. Ainda. Sempre.

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