Morreu David Bowie, um dos maiores ícones da cultura popular

Músico britânico tinha 69 anos. A sua influência está em todo o lado: na música, na cultura visual, na moda, nos estilos de vida. Morreu uma lenda.

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O choque. A morte é-o sempre, mas nas circunstâncias actuais foi-o mais. Ninguém sabia publicamente que estava doente. E na última sexta-feira, dia do seu aniversário, tinha acabado de lançar um novo álbum que parecia um recomeço. É verdade que o mistério e a surpresa sempre fizeram parte dele. Esta era, porém, a notícia que ninguém desejava.

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O choque. A morte é-o sempre, mas nas circunstâncias actuais foi-o mais. Ninguém sabia publicamente que estava doente. E na última sexta-feira, dia do seu aniversário, tinha acabado de lançar um novo álbum que parecia um recomeço. É verdade que o mistério e a surpresa sempre fizeram parte dele. Esta era, porém, a notícia que ninguém desejava.

O músico britânico David Bowie, uma das maiores celebridades da cultura popular, morreu na madrugada desta segunda-feira, aos 69 anos, em Nova Iorque, onde estava radicado há anos. A notícia foi divulgada na sua página oficial do Facebook e do Twitter. O seu publicista, Steve Martin, confirmou a morte ao canal Sky News.

"10 de Janeiro de 2016: David Bowie morreu tranquilamente hoje, rodeado pela sua família, após uma corajosa batalha contra o cancro durante 18 meses", referia a nota publicada nas redes sociais, cerca das 6h30. "Muitos de vós partilham esta perda, mas pedimos que respeitem a privacidade da família durante o tempo do luto", completa a nota. 

Era músico, cantor, compositor ou letrista, mas acima de tudo era um artista total, alguém que foi capaz de compreender antes de todos que o rock era também a possibilidade de afirmar um novo universo cultural, um outro imaginário, renovadas formas de ser e de existir. E foi-o até ao fim. Blackstar, o álbum com que (sabemos agora) escolheu despedir-se, estava a ser bem acolhido. No PÚBLICO, descrevemo-lo como um disco ousado ou inspirado pelo jazz.

É uma obra inquietante e negra, povoada por personagens bizarros e música intensa, onde por vezes parece reflectir sobre si próprio e outras sobre a angústia do presente, numa obra em aberto com muitas possibilidades de decifração.

No vídeoclipe para a canção Lazarus (nome do musical co-escrito por Bowie e pelo dramaturgo irlandês Enda Walsh que se encontra em cena na Broadway), realizado por Johan Renck, surge magro e envelhecido, deitado numa cama de hospital, começando por cantar: "Look up here, I'm in heaven/ I've got scars, that can't be seen/ I've got drama, can't be stolen/ Everybody knows me now." Naturalmente, agora, mais do que uma canção ou um vídeo premonitório, pode ter-se a leitura de que a totalidade do álbum era quase um testamento, uma espécie de carta de despedida.

Já esta segunda-feira, o produtor Tony Visconti, seu colaborador desde os anos 1960, publicou no Facebook uma nota que atribui sentido a essa leitura, dando a entender que sabia da morte iminente. "Fez sempre o que quis", escreveu. "Queria fazer as coisas à sua maneira e da melhor forma. A morte foi como a sua vida – uma obra de arte. Fez Blackstar para nós como prenda de despedida. Há um ano que eu sabia que ia ser assim. No entanto, não estava preparado. Era um homem extraordinário, cheio de amor e vida. Estará sempre connosco. Por enquanto, o que há a fazer é chorar."

Desde que a morte foi anunciada, as redes sociais foram inundadas. No Twitter registaram-se três milhões de mensagens até às 12h30. Os Rolling Stones lamentaram o desaparecimento de “um artista extraordinário”; Bruce Springsteen classificou-o como "um artista visionário"; Iggy Pop recordou a amizade com Bowie como “a luz” da vida dele; Madonna disse ter ficado “devastada”, enquanto Kanye West e os Pixies admitiram reverenciá-lo. .

Da Alemanha chegou um agradecimento por ter ajudado a derrubar o Muro de Berlim, como escreveu o ministro dos Negócios Estrangeiros no Twitter, apelidando-o de “herói” – recorde-se que foi na Alemanha dividida, onde viveu uma temporada na década de 1970, que gravou três álbuns. A morte do criador de Space oddity e Life on Mars também foi lamentada no espaço, com uma mensagem do astronauta Tim Peake a partir da Estação Espacial Internacional.

Mas é naturalmente em Inglaterra que as reacções têm sido mais expressivas, com o primeiro-ministro britânico, o conservador David Cameron, a escrever no Twitter que "era um mestre da reinvenção, que sempre a fez bem", enquanto o líder trabalhista, Jeremy Corbyn, considerou que "foi um grande músico e um grande artista". Também em França, o primeiro-ministro, Manuel Valls, afirmou que era "um artista fora de série" e "um herói do rock."

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Era um artista total. Tinha uma maneira emancipada de pensar a sua actividade. Partia da música para, com liberdade e inquietação, transcender linguagens algures entre a música, a arte, a moda, a literatura, a filosofia, o cinema, o teatro, o design gráfico ou a performance –, mostrando que a cultura popular podia ser reveladora. Era assim que se pensava a si próprio, era assim que pensava a realidade à sua volta.

Foi talvez o primeiro músico moderno  ou será melhor chamar-lhe pós-moderno?  a perceber que música, imagens, conceitos e comportamentos eram elementos que se tocavam, integrando o mesmo corpo artístico. Na actualidade, de Madonna a Björk, dos Daft Punk a Lady Gaga, dos LCD Soundsystem aos Arcade Fire, na cultura de massas ou nas franjas minoritárias, todos o fazem.

Vídeo: O caleidoscópio de David Bowie

 

Mas ele foi o primeiro. Como todos os grandes artistas, foi muito além do seu centro de acção. Pensava o seu trabalho artístico como um todo. O seu corpo também era matéria plástica, não espantando que tivesse tido também uma carreira como actor, tanto no cinema como no teatro. A crítica reparou nele em Absolutamente Principiantes (Julien Temple, 1986), mas participou em muitos outros filmes, como Fome de Viver (John Blaylock, 1983), Feliz Natal, Mr. Lawrence (Nagisa Oshima, 1983), A Última Tentação de Cristo (Martin Scorsese, 1988), Twin Peaks (David Lynch, 1992), Basquiat (Julian Schnabel, 1996), Christiane F (Ulrich Edel, 1981), ou O Terceiro Passo (Christopher Nolan, 2006).

No limite, até a sua vida foi uma obra de arte. A forma como administrou os últimos anos prova-o, como se quisesse mostrar que surpreender ainda é possível. Na era da Internet, da sobreexposição, da comunicação incessante, das fugas de informação e das redes sociais, uma celebridade conseguiu apanhar toda a gente desprevenida, lançando dois álbuns sem aviso prévio, e até a sua doença foi ocultada. Dir-se-á que por compreensíveis razões de intimidade. Mas também existe quem argumente que foi a forma de criar mais uma personagem enigmática.

Em 2013, surpreendeu o mundo com o seu regresso ao activo. Havia dez anos que não lançava qualquer álbum novo e desde 2006 que não dava concertos. As aparições públicas também rareavam. Até o seu último biógrafo, o jornalista inglês Paul Trynka, que um ano antes escrevera o livro Starman – The Definitive Biography, ficou boquiaberto quando a 8 de Janeiro de 2013 festejou 66 anos mostrando ao mundo uma nova canção, Where are we now?; dois meses depois, saiu o álbum The Next Day.

Na altura, Trynka dizia ao PÚBLICO que o impacto de The Next Day, "gravado em segredo total", era totalmente justificado. “Porque [Bowie] teve uma influência tão grande sobre o som e a imagem da música actual que o seu desaparecimento havia deixado um grande vazio.”

Durante dois anos gravou esse disco sem que ninguém soubesse, depois de muitas especulações sobre a sua saúde. É verdade que durante esse tempo não esteve ausente por completo (surgiu em palco ao lado dos Arcade Fire, de David Gilmour e de Alicia Keys e colaborou pontualmente com TV On The Radio, Scarlett Johansson ou Kashmir), mas parecia ter-se remetido à condição de pai de família, levando uma vida tranquila em Nova Iorque, ao lado da mulher, a ex-modelo Iman, e da filha de 15 anos de ambos, Alexandria Zahara – para além dela, tem um outro filho, o realizador Duncan Jones, fruto de um primeiro casamento com Angela Bowie, que terminou em 1980.

2013 seria o ano do seu grande regresso a todos os níveis: além do álbum, houve também uma grande exposição no Museu Victoria & Albert de Londres, David Bowie Is, que dava a ver a sua carreira nas mais diversas dimensões, explorando as suas múltiplas identidades e demonstrando a sua incomparável influência na música, nas ideias, na cultura visual e nos comportamentos, desde os anos 1960 ao presente, através de roupas, fotos, excertos de filmes e manuscritos inéditos.

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Neste tempo de cultura fragmentária, em que os artistas comunicam cada vez mais para audiências estilhaçadas, David Bowie acaba por ser uma das últimas celebridades de alcance global. “E nesse sentido", sublinhava Paul Trynka em 2013, "acaba por reflectir uma certa nostalgia pelo tempo em que isso era possível. Por outro lado, é uma celebridade atípica, alguém suficientemente ambíguo que se expôs muito, mas manteve sempre uma certa distância, um mistério, uma mística, que leva as pessoas a desejarem querer saber mais, ouvir mais, estar mais próximas.”

Não é comum o conhecimento que tinha das dinâmicas culturais, das mais massificadas às marginais. Fascinava-o o conceito de celebridade, como algumas canções (Starman, Andy Warhol, Star, The prettiest day) ou as palavras de Heroes (“We can be heroes/ just for one day”) manifestaram. No álbum de 2013 havia também Stars (are out tonight), outra auto-reflexão sobre o culto das celebridades, com Bowie a olhar-se ao espelho.

“Ele é um descendente directo de Andy Warhol”, dizia ao PÚBLICO o curador da retrospectiva do Museu Victoria & Albert, o inglês Geoffrey Marsh, em 2013, citando uma frase do poeta William Blake que, na sua opinião, o explicaria: “Alguém que não teve um predecessor, que não vive a par dos seus contemporâneos e não pode ser substituído por qualquer sucessor.” Ou seja, uma personagem única.

Desde o lançamento do álbum de 2013 que parecia em reavaliação. A compilação Nothing Has Changed de 2014 dava-o a entender. Não era uma simples antologia. Notava-se um olhar cuidado. Havia uma leitura sobre a sua obra, ordenada cronologicamente dos temas mais recentes aos mais antigos, como se quisesse mostrar que se mantinha actual. E na verdade os últimos discos mostravam um músico capaz de assimilar ideias aventureiras num vocabulário pop, mais uma vez reinventando-se, sem deixar de ser ele próprio, ou incarnando ideias colectivas para as transformar em canções suas.

Mudanças

Não é fácil dizer se era Bowie que se adaptava aos acontecimentos culturais mais relevantes, ou se contribuía de forma determinante para a sua emergência. Provavelmente aconteciam ambas as coisas. Algo é certo – não deixava nada ao acaso. A cada novo disco mudava, absorvendo e lançando tendências, num misto de música, arte conceptual e estética, com o som, a roupa, a maquilhagem, as capas dos discos, a performance a participarem no mesmo acontecimento.

Desde os anos 1960 foi Major Tom, Ziggy Stardust, Aladdin Sane, Halloween Jack ou Thin White Duke. Foi mod, hippie ou glam-rocker. Augurou o punk, inspirou-se na electrónica alemã nos anos 1970, beneficiou da euforia provocava pela MTV nos anos 1980, juntou-se à vaga dançante nos anos 1990 e renasceu desde os 2000. Directa, ou indirectamente, acabou por marcar a maior parte dos acontecimentos mais relevantes da cultura popular dos últimos 40 anos.

Em 2004 foi submetido a uma angioplastia de urgência, o que levou ao cancelamento da Reality Tour, a poucos dias da passagem pelo Porto – naquela que seria a sua terceira presença em Portugal, depois da estreia no estádio de Alvalade em 1990 durante a digressão Sound + Vision e de um concerto em 1996, no festival Super Bock Super Rock, em Lisboa.

Era o mestre da reinvenção. Tornou-se um cliché dizer-se que era um camaleão, alguém que mudava de pele em cada novo álbum. Mas a verdade é que David Robert Jones, seu verdadeiro nome, surpreendeu inúmeras vezes, sugerindo novos conceitos, personagens e roupagens, influenciando a cultura musical das últimas décadas, mas também o imaginário visual e os estilos de vida de inúmeras gerações.

Nasceu a 8 de Janeiro de 1947, em Londres, numa família modesta do bairro de Brixton. Os pais chamaram-lhe David Jones, nome que o músico viria a mudar 19 anos mais tarde, em 1966, devido ao êxito alcançado por um outro David Jones – o dos Monkees. A discografia viria a ser longa: 26 álbuns de estúdio (dois dos quais com os Tin Machine), nove álbuns ao vivo e três bandas sonoras. E mais uma mão-cheia de EP e mais de uma centena de singles. Estima-se que ao longo dos anos tenha vendido no total cerca de 140 milhões de discos em todo o mundo.

Na alvorada dos anos 1960 integrou várias formações, antes de lançar o primeiro álbum homónimo em 1967. Space Oddity (1969) e The Man Who Sold the World (1970) prepararam o caminho para o sucesso que foi Hunky Dory (1971), o seu primeiro álbum de platina no Reino Unido, ou para The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars (1972) e Aladdin Sane (1973) . É nessa fase que se inspira no teatro kabuki ou que explora questões de género e sexualidade (também aí chegou primeiro) para criar personagens como Ziggy Stardust, a andrógina e bissexual estrela rock de outro planeta .

Foram tempos de grande efervescência, em que não só gravou álbuns em nome próprio, como também produziu Transformer, de Lou Reed, ou Raw Power, dos Stooges de Iggy Pop, antes de lançar Diamond Dogs (1974), onde prenunciava a revolução punk que estava à porta, e do qual sairia o êxito Rebel rebel. Em 1975 editaria Young Americans, culminando a sua obsessão pela música soul, e originando o seu número um nos EUA com Fame. Uma outra pele, a do Thin White Duke, acabou por surgir no seu período de Los Angeles, com Station to Station (1976).

Em 1977 dá início à trilogia de Berlim, que muitos consideram a sua fase mais criativa, com Low (1977), Heroes (1977) e Lodger (1979), gravados na capital alemã com Brian Eno ao leme, numa mistura de electrónicas, pop e técnicas vanguardistas, antecipando muito do que se viria a ouvir no período new wave e pós-punk. Nos anos 1980 deu-se a conhecer através de Scary Monsters (1980) e depois com Let's Dance (1983), o seu maior êxito de vendas, em grande parte por causa do tema-título e de China girl, com assinatura na produção de Nile Rodgers dos Chic.

O próprio Bowie pareceu não saber lidar com esse sucesso, lançando no ano seguinte uma espécie de réplica, o álbum Tonight, do qual foi extraído o êxito Blue jean, mas que não alcançou o impacto comercial do seu antecessor. Under Pressure, o single que gravou em 1981 com os Queen, ou o dueto que fez em 1985 com Mick Jagger para o Live Aid, Dancing in the street, ajudaram a cimentá-lo como celebridade em todo o planeta, mas álbuns como Never Let Me Down (1987) e os dois que registou com os Tin Machine estão entre os seus momentos menos conseguidos.

Nos anos 1990 com Black Tie White Noise (1993), ao lado de Nile Rodgers, ou com The Buddha of Suburbia (1994), tentou relançar a carreira. Foi provavelmente a sua fase mais difícil. Em 1995 voltou a juntar-se a Brian Eno para Outside, andando em digressão com os Nine Inch Nails, e em 1997 lançou Earthling, muito marcado pelas linguagens electrónicas da altura, tentando chegar a audiências mais novas, mas com resultados desiguais.

A primeira metade da década de 2000 foi mais entusiasmante. David Bowie voltou a conquistar os admiradores de sempre, ao mesmo tempo que as novas gerações começaram a olhá-lo com fervor, graças a álbuns como Heathen (2002) ou Reality (2003), e principalmente devido ao distanciamento provocado pelo tempo. De repente, todos tomávamos consciência de que aquele homem havia sido determinante na forma como olhamos para o mundo. Não apenas o da música, mas também o da arte, do cinema, da moda, dos comportamentos ou da sexualidade. 

Depois da prolongada paragem, que se seguiu à digressão de 2004, só voltaria em 2013 com The Next Day, documento de grande vitalidade que o mostrava em forma, capaz de criar momentos de introspecção ou de electricidade rock, a que se seguiria Blackstar, editado na sexta-feira passada, um álbum magnífico onde cabe toda a sua vida. E, sabemo-lo agora, também a sua morte. A sua obra encerra com I can’t give everything away, um momento de reflexão na canção mais clássica do disco, aromatizada com o charme da eternidade. Completa-se com ele a despedir-se de nós.

Até sempre.

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