Arábia Saudita: Uma potência assustada pode ser perigosa

O Irão é a obsessão dos sauditas, que o encaram como uma ameaça vital. Agora é a Casa de Saud que se sente cercada e se mostra mais agressiva

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A Arábia Saudita é uma monarquia poderosa, vulnerável e perigosa porque assustada. A execução de 47 pessoas no dia 2 de Janeiro, entre elas um líder religioso xiita saudita, o xeque Nimr al-Nimr, teve uma repercussão internacional. A reacção do Irão foi virulenta, cavando mais a hostilidade entre o mundo sunita e o mundo xiita e criando alarme sobre o risco de conflito militar entre sauditas e iranianos.

O pano de fundo não é uma “guerra religiosa” entre sunitas e xiitas mas um conflito entre potências que usam as bandeiras religiosas para mobilizar aliados e legitimar a sua luta pela hegemonia. O pano de fundo é o colapso da ordem regional após as “primaveras árabes” e o distanciamento dos Estados Unidos. Morreu a ordem desenhada pelas potências coloniais no fim da I Guerra Mundial.

Riad sente-se em perigo. Com o acesso ao poder do rei Salman, em Janeiro de 2015, lançou-se numa ofensiva para recuperar a supremacia e afirmar perante os EUA a sua autonomia estratégica, a começar pelo intento de torpedear o acordo nuclear com Teerão.

A execução de Nimr não foi um acto precipitado. Teerão fizera repetidos avisos a Riad para não tocar em Nimr. O novo rei quis fazer perder a face ao ayatollah Khamenei. Este respondeu à letra, augurando uma “vingança divina” sobre a Casa de Saud. Cresce de parte a parte uma retórica bélica.

No entanto, as 47 execuções têm outra face. Se foram mortos quatro xiitas, os restantes 43 serão jihadistas sunitas, entre eles Faris al-Zaharani, preso desde 2004 e retratado pela imprensa saudita como o “principal ideológo da Al-Qaeda”. Explica Angus McDowall, da Reuters, que a mensagem é clara: para lá do Irão, os sauditas temem a ameaça ideológica dos jihadistas que reivindicam a liderança das correntes fundamentalistas e desafiam o estatuto dos Saud como “árbitros da ortodoxia religiosa e legítimos governantes do país”.

O declínio árabe

Um editorial do Le Monde, no dia 4, ilustra o alarme. “Como os sonâmbulos de 1914, a Arábia Saudita e o Irão parecem avançar inexoravelmente para o abismo da guerra. Cada acção de um provoca a reacção do outro, e nenhum encara abdicar da última palavra na escalada em curso.”

O alarme será algo exagerado. Iranianos e sauditas preferem confrontar-se fora dos seus territórios, sem envolver os seus exércitos e sacrificar as suas populações, em “guerras por procuração”, como na Síria.

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Manifestação em Nova Deli contra a execução do xeque Nimr al-Nimr. Os protestos alastraram a vários pontos do mundo Adnan Abidi/REuters

Os sauditas têm motivos de preocupação. As potências árabes parecem em declínio. O Egipto desapareceu como líder regional. O Iraque permanece dividido e a Síria em guerra civil. Para Salman, só a Arábia Saudita pode exercer a liderança do mundo árabe e travar o Irão.

Entretanto, a posição americana está a mudar e não só devido à sua “fadiga militar” no Médio Oriente. Barack Obama deu prioridade ao acordo nuclear com o Irão e à viragem para a Ásia. E há outro factor: “Num Médio Oriente em rápida mudança, os EUA vislumbram uma diminuição da influência árabe pela erosão do sistema estatal, decorrente da falta de legitimidade política, de décadas de autocracia, da ascensão de políticas identitárias que estão a desencadear um sectarismo sangrento e sem precedentes numa larga frente, do Golfo ao Mediterrâneo” (Al-Arabiya, 8 de Novembro de 2014).

Washington admite que a cooperação com o Irão poderia atenuar as linhas de fractura entre os mundos sunita e xiita. Mas observa o analista americano Vali Nasr: “Os sauditas não são capazes de aceitar um mundo em que o secretário de Estado americano [John Kerry] fala com o seu homólogo iraniano no seu BlackBerry.”

A Casa de Saud

A Arábia Saudita não é um país “como os outros”. O próprio nome a liga indissoluvelmente a uma família. Tem as maiores reservas de petróleo do planeta. As peregrinações a Meca ilustram o seu lugar central no mundo muçulmano.

O Estado foi fundado por Abdulaziz ibn Saud (1875-1953). O clã Saud, que dominava a região de Riad, foi expulso no século XIX pelos otomanos e um clã rival. Em 1902, Ibn Saud abandona o seu refúgio do Kuwait e, numa operação audaz, reconquista Riad. Aproveitando a derrocada do Império Otomano no fim da I Guerra Mundial, ocupa a maior parte da Península Arábica. Em 1925 conquista o Hejaz, a ocidente, o que lhe dá a guarda dos lugares sagrados: Meca e Medina. Em 1932, reúne os seus territórios no Reino da Arábia Saudita.

Há um traço particular na Casa de Saud: a aliança, inclusive familiar, desde o fim do século XVIII, com um movimento religioso, o wahhabismo, que defende o regresso a uma interpretação literal do islão. O regime saudita não é uma teocracia, é uma osmose “entre o sabre e o turbante”.

Em 1945, Ibn Saud e o Presidente americano, Franklin Roosevelt, assinam junto do Canal do Suez uma aliança estratégica: acesso privilegiado dos americanos ao petróleo saudita em troca da segurança militar do reino garantida pelos EUA.

Faisal, filho e sucessor de Ibn Saud, acabará por nacionalizar a companhia petrolífera, Aramco. Promove uma nova diplomacia. Graças aos petrodólares, multiplicados nas crises petrolíferas, sobretudo em 1973-74, Riad lança a exportação do wahhabismo em todo o mundo, construindo mesquitas e centros culturais, pagando madrassas (escolas corânicas) e pregadores, comprando a influência em estados clientes. O islão salafista expande-se nos países muçulmanos e na Europa.

“Faisal foi o arquitecto da moderna Arábia Saudita. Herdou um reino pobre com um governo quase medieval e transformou-o num Estado moderno com uma dimensão mundial”, escreve o analista americano Bruce Riedel.

Agora a Casa de Saud paga o preço. O Estado Islâmico (EI) é olhado no mundo como um “filho ideológico” da Arábia Saudita. Os atentados de Paris agravaram esta percepção.

A obsessão iraniana

A rivalidade com o Irão remonta à revolução islâmica de Khomeini de 1979 e ao seu desígnio de espalhar a nova ideologia revolucionária, com sangrentos confrontos inclusive em Meca. O alarme volta a soar em 2003, quando a invasão americana do Iraque abre as portas a um governo xiita e à influência do Irão, inaugurando nova etapa na rivalidade entre os blocos sunita e xiita. Em 2011, eclodem as “primaveras árabes” que geram uma instabilidade geral e se propõem varrer os governantes tradicionais — o que a Casa de Saud não tolera.

A Arábia Saudita teve um papel central na sua liquidação. O caso emblemático é o Egipto, em que Riad apoiou a destituição do Presidente Morsi, da Irmandade Muçulmana, e financia a ditadura militar do general Sissi.

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A guarda real em frente a fotografias do antigo rei Abdullah bin Abdulaziz, o seu sucessor, Salman bin Abdulaziz e o vice-primeiro-ministro Muqrin bin Abdulaziz Fayez Nureldine/Reuters

Seguiu-se o caos: guerras civis na Síria, Líbia e Iémen. Cresceu a instabilidade no Líbano, na Jordânia, na Tunísia e até no Kuwait. O Irão foi a potência que melhor explorou a situação, aumentando a sua influência.

A grande contra-ofensiva saudita começou em Dezembro de 2014, no fim do reinado de Abdullah, com a descida do preço do petróleo. Foi uma prova de força. Ao aumentar a produção e fazer cair os preços, Riad terá visado limitar a produção do petróleo de xisto nos EUA. Acima da renda petrolífera pôs a manutenção da sua quota no mercado mundial, mantendo o estatuto de “árbitro” do mercado do crude. Outro objectivo seria modernizar e diversificar a economia, rompendo com a total dependência do petróleo. E, ao mesmo tempo, foi um golpe para estrangular a economia iraniana.

Seguiu-se a coroação do novo rei, Salman, 79 anos. Procedeu à centralização do poder num triunvirato: o rei, o príncipe herdeiro Mohammed bin Nayef, e o vice-herdeiro, Mohammed bin Salman, filho do monarca, que ocupa a Defesa. Depressa este lança a operação no Iémen, em que Riad se assume, contra o Irão, como “gendarme regional”. Por fim, organiza a “coligação antiterrorista” de 34 Estados, formalmente dirigida contra o EI, mas que o Irão interpreta como uma tentativa para o isolar.

Potência desestabilizadora?

Muitos analistas e algumas agências de informação, como o BND alemão, qualificam como “desestabilizadora” a nova política intervencionista de Riad. Durante décadas, o país quis ser “um pólo de estabilidade na região”, papel inerente “à sua cultura interna ultraconservadora”, sublinha David Rigoulet-Roze, especialista da geopolítica saudita. Esta viragem começou com as “primaveras árabes” e acentuou-se com Salman. “Há uma manifesta mudança, tanto em termos de imagem como de política, porque a estratégia mudou.” É uma política “errática” que é percebida como “desestabilizadora”. Previne Rigoulet-Roze: “Toda a estratégia saudita deve ser lida à luz da obsessão do Irão. (...) Antes, era o Irão que se sentia cercado, hoje, é paradoxalmente a Arábia Saudita.” 

Assinala a analista Xenia Wickett, do think tank britânico Chatham House, que as notícias da turbulência no Médio Oriente inundam os media. “No entanto, uma muito maior e mais fundamental mudança está a acontecer: a reemergência do Irão na comunidade internacional. As consequências desta mudança serão profundas, mas muita gente em Washington parece cega perante elas.” As crescentes tensões dos últimos dias entre iranianos e sauditas apenas realçam a importância daquele facto. “[Os EUA] têm de saber gerir o recente aventureirismo do seu aliado saudita perante a reemergência do Irão como potência regional.”

“Os que sabem não falam”

A monarquia saudita está sob grande pressão noutras frentes. Caiu a receita do petróleo. O Governo decretou uma redução das gigantescas subvenções sociais e adoptou um orçamento de austeridade. Propõe-se lançar uma radical reforma, incluindo privatizações e a atracção de investimento estrangeiro, visando a diversificação da economia. Mas o corte da despesa social tem um limite político. Os sauditas não pagam impostos, têm educação e saúde gratuitas e tudo é altamente subsidiado, da electricidade à habitação. Dois terços dos habitantes são empregados pelo Estado. É um pacto de “bem estar por obediência”.

Por outro lado, Riad gasta milhões de milhões para evitar o colapso de estados aliados, como o Egipto, para sustentar os combatentes sunitas no estrangeiro, como na Síria, ou financiar a actividade religiosa no estrangeiro, para lá da fortuna que custa a guerra iemenita.

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O rei Salman centralizou o poder num triunvirato que inclui o príncipe herdeiro Mohammed bin Nayef, e o vice-herdeiro, Mohammed bin Salman, filho do monarca, que ocupa a Defesa MANDEL NGAN/AFP

Há outras incógnitas. Salman será o último rei filho de Ibn Saud. Seguir-se-á a geração dos netos: cerca de 200 príncipes disputando honras e rendas. A centralização do poder por Salman terá criado tensões na família real. Também o imenso e ultraconservador establishment religioso não abdicará dos seus privilégios. Por outro lado, a monarquia tem de ter em conta as aspirações dos jovens, mais cultos do que ontem: 70% dos sauditas têm menos de 30 anos. E se se fala em reformas económicas nenhuma reforma do absolutismo é concebível.

“O que sobretudo nos falta saber é como os sauditas olham os assuntos estrangeiros que afectam as circunstâncias internas, criando ameaças domésticas que consideram ainda mais assustadoras do que a própria ameaça externa”, escreve o analista americano Kenneth M. Pollack. E cita Greg Gause, especialista da Arábia Saudita: “Os que sabem não falam e os que falam não sabem.”

Se a Arábia Saudita está assustada também assusta, por outra razão. O desmoronamento do regime seria  inimaginável. Diz ao Financial Times um veterano diplomata britânico: “Livrem-se da Casa de Saud e estarão a gritar pelo seu regresso no prazo de seis meses.”

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