El Chapo conversou na clandestinidade com Sean Penn, o entrevistador de vilões

O actor norte-americano conseguiu chegar ao homem mais procurado nas Américas para o entrevistar. Acabou com um papel involuntário na captura do mais conhecido barão de droga da actualidade.

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A fotografia que Sean Penn tirou com El Chapo durante a sua visita, fez a ronda nos jornais mexicanos. Alfreda Estrella/AFP

Há muito de improvável na vida de Joaquín El Chapo Guzmán, durante meses o homem mais procurado nas Américas, e que desde Pablo Escobar ocupou como ninguém o imaginário colectivo do maior barão de droga no mundo. O aperto de mão ao actor norte-americano Sean Penn, publicado pela revista Rolling Stone, é apenas mais uma peça surrealista da sua história recente.

O gesto foi capturado nos primeiros dias de Outubro, quando Penn e uma pequena comitiva de actores e facilitadores se encontraram com El Chapo. Tinham passado poucas semanas desde que o mexicano escapara espectacularmente da prisão, usando um túnel de mais de um quilómetro e meio aberto até ao ralo do seu chuveiro. O orgulho do Governo do Presidente Enrique Peña Nieto dependia da sua recaptura.

A intenção de Penn era a de fazer uma grande entrevista. Conseguiu apenas uma fracção do que queria e fez do resto, da aventura que foi chegar a um dos homens mais procurados do mundo, um grande texto escrito na primeira pessoa para a Rolling Stone. A história foi publicada nos Estados Unidos e a polícia mexicana chamou este domingo o actor para a ouvir da sua própria boca.

A viagem de Penn não é surpresa para as autoridades. O actor e o seu grupo estavam a ser vigiados desde que aterraram no México na manhã de 2 de Outubro de 2015. Que El Chapo quis fazer um filme sobre a sua vida de aventuras improváveis já se sabia desde que foi capturado na sexta-feira, ao fim de seis meses de fuga. O rasto que deixou ao tentá-lo foi fundamental para que isso acontecesse, diz a polícia mexicana.

O actor e três amigos passaram semanas a planear o encontro clandestino. A ligação com o barão de droga foi a (também) actriz Kate del Castillo, que coincidentemente representou uma chefe de cartel numa novela mexicana. Guzmán desenvolveu uma amizade improvável com a actriz quando ela explodiu no Twitter em críticas ao Presidente e implorou ao líder do temível cartel da Sinaloa que começasse a traficar amor e não droga. El Chapo enviou-lhe flores e aí ficou criado um primeiro contacto de mensagens encriptadas entre ela e o grupo de Sinaloa. 

Os dois barões

El Chapo queria um filme sobre si próprio e só estava interessado em fazê-lo através de Kate. A actriz, Penn e dois amigos de longa data do actor pensaram primeiro numa longa entrevista. O actor recebeu autorização da Rolling Stone e os quatro partiram para uma cidade no meio do México. Daí, uma comitiva liderada por um dos filhos de Guzmán levou-os a um pequeno avião capaz de bloquear radares terrestres a partir dos ares. Aterraram numa montanha frondosa e desse outro lugar não nomeado viajaram durante muitas horas até ao rancho onde encontraram El Chapo.

Da história de vida de El Chapo que Penn procurava pouco se ficou a conhecer. O actor quis uma entrevista de dois dias e o barão aceitou-a. Agendaram-na para dali a semanas, mas o local onde se escondia foi assaltado por forças especiais e Guzmán isolou-se ainda mais. Penn só recebeu uma entrevista gravada em telemóvel, com as perguntas que enviara ao cartel de Sinaloa.

As respostas são evasivas e pouco esclarecedoras. Diz que nasceu pobre e que por não haver trabalho entrou no tráfico. “Bem, é uma realidade que as drogas destroem. Infelizmente, como disse, onde cresci não havia e ainda não há outra forma de se sobreviver, não há outra forma de trabalhar na economia”, afirma, sucessivamente interrompido por um galo que canta à distância.

Mas não foi esse o El Chapo que Penn encontrou e com quem jantou e conversou durante sete horas. Em vez de diminuir o seu papel no mundo da droga, Guzmán gabou-se aos presentes: “Eu forneço ao mundo mais heroína, meta-anfetamina, cocaína e marijuana do que ninguém. Tenho uma frota de submarinos, de aviões, de camiões e de navios.”

Durante o encontro, Penn repete que está convencido de que é seguido pelas autoridades antidroga norte-americanas e fantasia por duas ocasiões com a chegada de um drone armado. Mas o local onde se encontraram não era onde Guzmán vivia e foi mais tarde assaltado.

Talvez o relato mais precioso no texto de Penn seja aquele em que compara o comportamento de El Chapo com o de uma cena do barão de droga Tony Montana, no filme Scarface. Durante um jantar, Montana acusa todos os que estão num restaurante de serem cínicos por verem nele um “vilão”, quando foram na verdade incapazes de seguirem os seus sonhos. No jantar com Penn, El Chapo pergunta-lhe por que razão é que ele, um dos actores mais conhecidos em Hollywood, não estava a aceitar dinheiro da Rolling Stone e por que não estava no negócio do petróleo. A imagem que tem do mundo é o das empresas que cinicamente que lhe lavam o dinheiro ilícito da droga e que ele nomeia, mas Penn não.

Activista odiado

Penn não é só um dos mais conhecidos actores em Hollywood. É uma das caras mais visíveis do activismo liberal nos Estados Unidos. Parte do seu trabalho é irrepreensível: navegou um bote em Nova Orleães à procura de sobreviventes do furacão Katrina e, depois do grande terramoto no Haiti de 2010, criou uma organização humanitária que oferece cuidados médicos.

Não acontece o mesmo com a face assumidamente política do seu activismo. É essa a sua mais célebre e mais infame. Protestou desde Bagdad contra a invasão norte-americana, quando esta germinava ainda, em 2002. Mais tarde, quando a eleição de Barack Obama parecia iminente, as viagens de Penn à Venezuela e Cuba e as suas entrevistas a Hugo Chávez e Raúl Castro transformaram-no numa das vozes mais odiadas da direita.

Penn justificou-se, defendeu os dois chefes de Estado e disse então que o que ele tentava fazer era precisamente desconstruir a narrativa norte-americana que os vilificara como fez depois com ele. A América, explicou então, está a “tornar-se cada vez mais persuasível em demonizar estados estrangeiros e os seus líderes”. O actor acabou por se transformar numa espécie de inimigo por dizer que Chávez e Castro também não o eram – a recente reaproximação diplomática a Cuba parece em parte ilibá-lo.  

Na sua reportagem sobre Guzmán para a Rolling Stone, Penn assume o mesmo papel de desmistificador. “Como americano, sinto-me atraído em explorar aquilo que pode ser inconsistente nos retratos que os nossos governo e media impingem aos inimigos declarados”, explica. Como no passado, foi criticado este domingo por tentar engrandecer a figura de Guzmán. Marco Rubio, candidato à nomeação republicana para a corrida à Casa Branca considerou-o “grotesco”.

Mas o actor não tenta redimir a imagem de El Chapo no seu texto – como também não o tentou fazer com Chávez e Castro. Penn quer revelar outra inconsistência: a de uns Estados Unidos que se encaram exclusivamente como vítimas do tráfico de droga mexicano.

Como escreve: “No caso do barão de droga mais procurado no mundo, não seremos nós, o público americano, de facto cúmplices naquilo que demonizamos? Somos os consumidores, e como tal, cúmplices em cada homicídio, em cada [caso] de corrupção da capacidade de uma instituição proteger a qualidade de vida de cidadãos no México e Estados Unidos que deriva do nosso apetite insaciável por narcóticos ilícitos.”

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