O grupo automóvel que chocou de frente com o Banif

A Auto-Industrial era o segundo maior accionista privado do Banif, mas o negócio que parecia promissor em 2009 tornou-se um pesadelo para a empresa de comércio automóvel criada em Coimbra em 1920.

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O grupo Auto-Industrial já tem 95 anos de vida, mas dificilmente terá tido episódios mais turbulentos do que aqueles que viveu desde 2009, altura em que anunciou um acordo com o Banif através do qual se transformou no segundo maior accionista do banco nascido no Funchal.

Centrada na venda de automóveis, e referenciada como a maior empresa do distrito de Coimbra (cidade onde nasceu) em volume de negócios, a Auto-Industrial começou desde logo a sentir os efeitos da crise financeira que se iniciou em 2008 nos Estados Unidos, e que conduziu a uma retracção na compra de bens de consumo.

A 10 de Julho de 2009, numa das raras aparições públicas, o presidente da empresa, Mário Leite Santos, surgiu ao final do dia ao lado de Horácio Roque para anunciar a incorporação do Banco Mais, detido pela Auto-Industrial, no Banif.

O “namoro” com a instituição financeira especializada no crédito automóvel tinha começado em 2006, e a sua concretização, garantiu Mário Leite Santos, nada tinha a ver com a má conjuntura que o sector já estava a atravessar.

O Banco Mais, disse então o empresário de 61 anos, licenciado em Direito na Universidade de Coimbra e um dos maiores accionista da Auto-Industrial, estava demasiado focado na área automóvel e era mais “vantajoso” ter uma participação, mesmo que menor, numa instituição financeira de maior dimensão. Nesse momento, a empresa deu os primeiros passos em direcção ao que se transformaria numa tempestade perfeita.

Anos negros

O Banco Mais nasceu como uma sociedade financeira de apoio ao crédito, denominada de Tecnicrédito. Em 2000, já depois de a Auto-Industrial garantir os cerca de 50% do capital que estavam nas mãos do BCP/BPA, o Banco de Portugal concedeu-lhe uma licença bancária. Nove anos depois, quando se diluiu no Banif, o Banco Mais tinha também operações em Espanha, Polónia, Hungria, Eslováquia e Brasil (neste caso através de uma parceira com a Société Générale).

A união com o banco liderado por Horácio Roque foi desde logo vista como um movimento de consolidação positivo, a começar pelo então presidente do Banco de Portugal, Vítor Constâncio. A instituição financeira mudou o nome de Banco Mais para Banif Mais, na esfera do Banif SGPS, mas os sinais de que as coisas não corriam de feição começaram a acentuar-se passado pouco tempo.  Em Maio de 2010, morreu Horácio Roque, e o banco fechou o exercício com um lucro de 33 milhões de euros, uma queda de 38% face ao ano anterior.

Mesmo assim, a empresa, uma das maiores do sector do comércio automóvel em Portugal, mostrava-se convicta que os seus negócios acabariam por se “estender a outros domínios”. As vendas de veículos tinham recuperado face a 2009, com o volume de negócios a subir 28% para 340 milhões, e o resultado líquido a crescer 135% para oito milhões de euros.

No entanto, o principal negócio do grupo ia entrar em derrapagem. Em 2011, o ano em que a troika de credores (Comissão Europeia, BCE e FMI) entraram em Portugal, o volume de negócios caiu 27%, para 249,3 milhões (abaixo do mau resultado de 2009), e registou um prejuízo de 17,6 milhões. Quanto ao Banif, fechou o ano com um resultado líquido negativo de 162 milhões de euros. Os anos seguintes iam ser ainda piores. Em 2012, com Portugal a sofrer uma profunda recessão na economia, o grau de autonomia financeira da Auto-Industrial degrada-se, o volume de vendas do grupo desce para 186 milhões de euros, abaixo da fasquia dos 200 milhões, e o resultado líquido é negativo em 56 milhões de euros. No último dia do ano, o Estado anuncia a intervenção no Banif, através da entrada de 700 milhões de euros directamente no capital social e da aplicação de mais 400 milhões em obrigações convertíveis em acções (os denominados CoCo).

Depois desse movimento, os accionistas privados, como a Rentipar (empresa deixada por Horácio Roque, e que passa como herança indivisa para a família, acabando por ser encabeçada por Teresa Roque) e a Auto-Industrial, sem capacidade para responder às necessidades de capital sentidas pelo banco, assistem à diluição das suas posições.

O Estado fica dono de 99,2% do capital do Banif e de 98,7% dos seus direitos de voto. Poucos meses depois fica-se a saber que o prejuízo da instituição financeira chega aos 576 milhões de euros. Até essa altura, a Rentipar detinha perto de 60% do banco, cabendo à Auto-Industrial 13,4% e outros 2,4% a Joaquim Ferreira de Amorim. E, no caso da Auto-Industrial, o grupo tinham nas suas mãos valores mobiliários obrigatoriamente convertíveis em acções (VMOC’s).

Exposição ao Banif

A Auto-Industrial, no entanto, tenta reagir à queda do mercado e à forte exposição que detém ao sector financeiro, melhorando as operações e diminuindo os custos. Presente em outros mercados para além do automóvel, como o das máquinas agrícolas e de motores marítimos, tenta reduzir os custos. Em 2010, contava com 964 trabalhadores, número que desce para 764 no final de 2013 (chegando ao fim de 2014 com 732 pessoas, ou seja, menos 24% da força de trabalho). Mas os impactos são severos, mesmo se a factura do Banif não é sentida a 100%, já que a participação financeira é detida através de uma holding da qual a Auto-Industrial é dona de somente 64% do total. A própria estrutura da AI é altamente fragmentada.

De acordo com dados recolhidos pelo PÚBLICO, o maior accionista é Mário Leite Santos, dono de perto de 10% do capital, logo seguido por Tomás Rocha, membro do conselho de administração. Juntos, os cinco maiores accionistas detêm cerca de 30% do capital, e, nos últimos anos, diversos pequenos accionistas foram alienando as suas posições.

Em 2013, a Auto-Industrial faz um novo esforço financeiro no Banif, tal como os outros accionistas privados, aplicando no banco 25 milhões de euros, no âmbito do plano de recapitalização em curso. O Estado desceu então a posição para 77%. Nesse ano, ocorrem outras três operações de reforço de capitais do Banif, que trazem milhares de novos accionistas, muitos deles portugueses.

Segundo um relatório datado de Agosto de 2014, elaborado pela empresa de rating ARC (ex-Companhia Portuguesa de Rating), a Auto-Industrial teve de registar em 2013, por causa do Banif, uma perda de 14,9 milhões de euros. Depois, numa das operações de recapitalização, os VMOC’s foram convertidos em acções, o que gerou uma perda adicional de 97,7 milhões de euros. Ao todo, a participação detida pela empresa no Banif gerou uma perda global de 112,6 milhões de euros, contra os 77,2 milhões do ano anterior.

Em 2013, registou-se uma ligeira recuperação do mercado automóvel, mas, mesmo assim, como destacou a ARC, “o número de unidades vendidas representou 64% das unidades vendidas em cada um dos anos de 2003 a 2008”. O volume de negócios da Auto-Industrial sobe para 209,5 milhões, mas os resultados líquidos teimam em permanecer negativos, e a saúde financeira da empresa mantém-se problemática. A ARC realça o “elevado endividamento” do grupo, que  “resulta não só das características das suas principais actividades, mas essencialmente do investimento que detém no sector financeiro, o qual necessitou de reforço na sequência de requisitos de capitais próprios”.

Além disso, “o investimento do grupo no sector financeiro tem tido impactos com significado nos resultados e nos capitais próprios do grupo devido às fortes desvalorizações que sofreu”, diz a ARC, realçando “o aumento significativo dos spreads praticados pela instituições de crédito em Portugal nos financiamentos concedidos às empresas, com impacto no custo do capital alheio do grupo Auto-Industrial e na sua rendibilidade”.

No final de 2013, o Banif tinha cerca de 27.000 accionistas, contra os 5500 de Dezembro de 2012. Em Maio de 2014, acabariam por entrar outros 138,5 milhões de euros de capital no banco, através de mais 6690 novos accionistas. Nesse momento, o Estado ainda era dono de 60,5% do capital, cabendo à Rentipar apenas 6,5%, ficando a Auto-Industrial com 1,9%.

No entanto, o Banif mostrava dificuldade em pagar de volta os 400 milhões de euros em obrigações convertíveis ao Estado, e o colapso do BES, em Agosto de 2014, que afectou as contas do banco, viria dificultar ainda mais esse reembolso, ajudando a ditar o seu fim.

Reagir e vender

O esforço financeiro no Banif acabou por elevar a posição da Auto-Industrial para perto dos 2,5%, mas depressa o grupo foi descendo a sua posição. De acordo com o relatório de Agosto de 2014 da ARC, nessa data o grupo era dono de 2,1%, após vender acções, já em 2014, que lhe renderam seis milhões de euros, usados “para a redução do saldo da dívida financeira”. A menos-valia foi da ordem dos dez milhões.

O grupo acabaria por fechar o ano com um volume de negócios de 228,3 milhões de euros, mas mesmo com o resultado operacional a voltar a terreno positivo pela primeira vez desde 2010, o resultado líquido é ainda negativo em seis milhões. O fluxo de caixa (despesas versus entrada de receitas) é negativo, com grandes pressões na tesouraria e na liquidez, e o endividamento subiu para os 110,8% (passivo sobre o capital total), quando estava a menos de metade desse valor em 2010.

Com metade do capital social perdido, tanto a Auto-Industrial como a subholding que detinha a participação no Banif tiveram de convocar uma assembleia geral de accionistas no primeiro semestre de 2015 para decidir o que fazer. Havia vários caminhos possíveis, desde o fim da empresa até novas entradas em dinheiro. No entanto, não há registos de nenhuma operação, pelo que a decisão terá sido a de manter a empresa tal como estava, esperando que o problema se fosse resolvendo através de pequenos passos. O PÚBLICO enviou várias questões à Auto-Industrial que ficaram sem resposta. Também a ARC se recusou a responder aos pedidos de esclarecimento do PÚBLICO, remetendo para as suas análises de rating sobre o grupo (efectuadas no âmbito das linhas de obrigações emitidas pela Auto-Industrial).

Uma das estratégias foi a prorrogação, por mais cinco anos, de um empréstimo obrigacionista emitido em 2012 e que vencia em 2015 (passando o juro de 6,5% para 7%). Ao mesmo tempo, continuou a baixar a sua posição no Banif, mesmo com as acções do banco a baterem novos mínimos históricos (o fim do banco surgiu com os títulos a valer 0,002 euros, valor impensável até há pouco tempo para uma empresa cotada no PSI 20).

Tanto os activos imobiliários do grupo como o capital detido no Banif estavam, como se lê num relatório da ARC, “dados como garantia do saldo da dívida financeira”, com destaque para o BCP, que concentrava 27% do crédito concedido à Auto-Industrial, entre empréstimos de conta-corrente e de médio prazo.

No final de Maio, os accionistas foram chamados para aprovar a venda das acções detida no Banif por causa das dívidas ao BCP.

No final de Junho de 2015, a Auto-Industrial já tinha menos de 2% do capital do Banif, vendendo acções no mercado. Quando se deu a intervenção do Banco de Portugal em Dezembro, que ditou o fim da instituição financeira, a posição já andaria entre os 0,6% e os 0,7%.

Os títulos foram vendidos bastante abaixo do que valiam em 2009, mas pouco dinheiro é sempre melhor do que nada, e isso foi o que ficou a valer o capital detido por dezenas de milhares de accionistas no Banif. Sem saber, a Auto-Industrial escapou a perdas ainda maiores, e conseguiu ainda reduzir a sua dívida em 10 milhões, graças à venda do Banif Mais à Cofidis, concretizada em Junho. O encaixe valeu-lhe 10,6 milhões, usados quase exclusivamente “na redução da sua dívida financeira”, de acordo com a análise da ARC feita no final de Julho.

Ao nível das operações de venda de automóveis, a reacção do grupo passou pela redução de custos, seja através da saída de pessoal, seja por via do encerramento de negócios pouco lucrativos e pela concentração de actividades.

Em 2014, o mercado voltara a crescer, mas as vendas do grupo ficaram abaixo da média, com perda de quota de mercado. “As vendas do grupo Auto-Industrial cresceram menos do que o mercado em 2014, reflectindo sobretudo o encerramento de operações menos rentáveis, a perda da concessão da BMW e a saída da Chevrolet de Portugal”, nota a ARC. As principais fontes de receitas da Auto-Industrial estão ligadas às vendas de veículos da Opel, Ford e Mercedes. Pequenos investimentos continuaram a ser feitos, como a remodelação de um dos seus espaços mais emblemáticos, no centro de Coimbra, que, desde a passada terça-feira, conta com um supermercado Continente-Bom Dia (da Sonae, grupo dono do PÚBLICO). O contrato permite receber uma renda anual, enquadrada na estratégia da Auto-Industrial de “gerar fundos com as instalações que possui através da venda ou arrendamento”, como refere a ARC.

Apesar de todo o esforço, nomeadamente para reduzir as despesas fixas, a Auto-Industrial, de acordo com a análise de Julho da empresa de rating, deparava-se ainda com “importantes constrangimentos”, e “um nível de endividamento muito elevado”, principalmente devido à exposição ao Banif.

Há cerca de seis anos, quando anunciou a união do Banco Mais com a instituição financeira nascida no Funchal, Mário Leite Santos nunca pensaria que ter uma participação menor num banco maior viria ameaçar a existência do grupo criado em 1920. Neste momento, o pior parece já ter passado e a baixa das taxas de juro ajudam a dar oxigénio às contas da Auto-Industrial, mas a empresa ainda tem um longo caminho a percorrer até poder sentir-se em segurança. 

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