Em 2015, o teatro e a dança renasceram no Porto – e uma geração apareceu

2015 foi um ano hiperactivo nas artes performativas do Porto, e isso teve efeitos positivos para os criadores e intérpretes emergentes. Mas ainda há trabalho por fazer: mais espaços de criação, mais aposta, mais oportunidades para aprender (e errar).

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Paulo Pimenta
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Bruno Senune Paulo Pimenta
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Luís Miguel Cerqueira Paulo Pimenta
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Mariana Magalhães Paulo Pimenta
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Inês Barros Paulo Pimenta
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Marco Da Silva Ferreira Paulo Pimenta

Foi estranho aquele dia em que Luís Miguel Cerqueira, 21 anos, viu o seu nome em letras garrafais na fachada do Rivoli, debaixo dos do coreógrafo belga Jan Martens e do dramaturgo argentino Rodrigo García.

“Como foi? Numa palavra: assustador. Fiquei paralisado no meio de D. João I. Depois pensei: ‘olha, parabéns, cresceste. Bem-vindo à vida adulta, espero que corra tudo bem'." Luís estava a umas semanas de apresentar no Rivoli Isaurida (Uma História de Uma Mulher Cansada da Vida), o resultado de uma das Bolsas de Criação atribuídas em 2015 pelo Teatro Municipal do Porto a seis jovens criadores da cidade. Apenas um ano depois de ter acabado o curso no Balleteatro, percebeu, ali no meio da Praça D. João I, que essa coisa do teatro era “mesmo a sério”.

“Bem-vindo à vida adulta.” Foi algo que aconteceu bastante rápido aos casos que se seguem. Criadores e intérpretes emergentes de teatro e dança do Porto, sub-30, que apesar de terem sido oficialmente convidados a emigrar pelo anterior Governo, para sempre nos nossos piores pesadelos, conseguiram ficar, esgrimir por um lugar, trabalhar, mostrar-se – inclusive em palcos grandes, em alta-definição. 2015 trouxe-lhes mais oportunidades de apresentação e exposição, num ano particularmente hiperactivo no circuito de artes performativas do Porto, muito por causa do ritmo imparável (com falta de alguns intervalos para respirar) do Teatro Municipal.

Apesar do maior optimismo, não vale a pena envernizar a realidade. Um enorme fluxo de jovens artistas fica retido na orla do invisível e do desemprego, e os que conseguem chegar à tona continuam a ser da geração dos biscates e muitas vezes dos três turnos por dia (porque apesar da insegurança e da fadiga dos sprints semanais, ficar parado pode ser igual a nunca começar), da geração que morre um bocado por dentro cada vez que tem de passar mais um recibo verde. A geração do “e amanhã?”

“Continuo a ser precário, claro, mas consegui abrir uma porta”, diz Luís Miguel Cerqueira. Numa co-produção entre o Teatro Municipal e o Teatro Nova Europa, estreou no final do ano, no Rivoli, Isaurida, com texto e encenação originais. Montada a partir da ansiedade geracional e das emoções a desabar no final de uma relação amorosa, numa fase em que ainda é atípico cozinhar “linguine para um”, Isaurida precisa de afinações dramatúrgicas e linguísticas, mas tem identidade e potencial. E o facto de ser um monólogo escrito para uma mulher (a actriz recém-formada Tatiana Neves Rocha) traz alguma frescura a um universo ainda algo falocêntrico, a dramaturgia.

Há uma linguagem descendente do Teatro Praga, uma influência cardeal, a par da mala voadora, para muitos criadores e intérpretes da nova geração do teatro português. “Os Praga têm uma influência enorme em mim. Não há neles a figura do encenador e na nossa geração acho que essa figura está a esbater-se. Tens mais um director artístico e uma criação colectiva, e isso é muito menos castrador”, refere Luís, destacando também os influxos vindos de Luís Mestre, seu tutor, Victor Hugo Pontes e Nuno M Cardoso.

Luís fez o primeiro estágio profissional como actor no Teatro Nacional São João (TNSJ), na peça A Cena (2014), de Valère Novarina, encenada por Renata Portas. Mas prefere focar-se na dramaturgia (em Abril, no Rivoli, estreará uma co-criação com Joana Providência). “Precisamos muito de autores novos e há uma lacuna na formação de dramaturgia. O ensino artístico está muito debilitado graças ao Nuno Crato [Ministro da Educação e Ciência de 2011 a 2015], mas também é preciso as instituições abrirem portas aos novos criadores.” Falta essa aposta no teatro, diz, um meio que é “elitista para quem está a começar, mais do que a dança”. “Somos um monte de novos artistas dentro do armário. Nós precisamos das instituições e elas precisam de nós para se renovarem, sem tirar lugar aos outros. Em termos de agenda, por exemplo, podia-se encurtar a carreira de um espectáculo: em vez de estar duas semanas estar uma, e atirar o resto do dinheiro para duas companhias jovens, nós precisamos de pouco”, propõe. “Não quero ser uma estrela. Só quero espaço para experimentar e aprender, nem seja por uns meses – e isso falta cá.”

“Aquela condescendência”
A opinião de Luís é partilhada por Mariana Magalhães, actriz de 22 anos que tem tudo para se tornar num assunto muito sério nos próximos tempos. Já o tínhamos farejado no TNSJ em Bilingue (de José Maria Vieira Mendes e Pedro Zegre Penim), espectáculo inaugural do projecto NÓS, uma parceria entre o TNSJ, o Teatro Nacional D. Maria II e escolas do Porto, Lisboa e Galiza; confirmámo-lo em O Nome da Rosa, criação de Pedro Zegre Penim e Hugo van der Ding integrada nos Ícones do Desporto e apresentada no Rivoli em Novembro, com um elenco que, além de Mariana, integra outras jovens actrizes (este mês segue para o D. Maria, de 14 a 17).

“O Porto está mais dinâmico e há mais oportunidades para criadores e actores emergentes, mas falta acreditar mais em nós e abrir caminho, como fez o Pedro Penim”, assevera a actriz, outra partidária dos Praga (“não te impõem preconceitos sobre formas de interpretar, de fazer e de estar em palco”). O teatro é ainda um meio muito hierarquizado? “Sim. Muitos encenadores trabalham sempre com os mesmos actores e devia haver mais estágios curriculares e profissionais de interpretação, mais castings nos teatros e nas companhias, mais abertura para residências…Há aquele preconceito, aquela condescendência do ‘não te conheço de lado nenhum, és muito nova, sei lá se és capaz ou não’. E o que é isso de ser capaz?”

É verdade que as companhias têm pouca margem de manobra financeira para acolher os emergentes, dada a dependência inevitável da Direcção-Geral das Artes, mas há quem faça esse esforço. Inês Barros, 25 anos, é prova disso. Colabora regularmente com o Teatro da Rainha (Caldas da Rainha), dirigido por Fernando Mora Ramos, que a descobriu num espectáculo feito na Escola Superior de Música e Artes de Espectáculo. Esse trabalho de olheiro devia ser mais incentivado pelas escolas, nota Inês. “Em Londres chegas ao terceiro ano e em todos os espectáculos que fazes tens encenadores, agentes de castings, dramaturgos e directores de companhias a ver o que ali está. Aqui, apesar de teres pessoas do meio a ver, é algo que devia ser mais regular e organizado.”

Desde 2014, Inês Barros integra também, como actriz e produtora, o Teatro Anémico (a mais recente criação, Escuto, a partir de Woody Allen, estará em Évora no A Bruxa Teatro dias 22 e 23 deste mês). São artistas associados da Visões Úteis, o que significa apoio à produção, um espaço para ensaiar e mais divulgação. “Eles estão a lançar-nos, na verdade”, assinala Inês. O Teatro Anémico, idealizado por Joana Africano e Tiago Moreira, foi reactivado em 2014 mas surgiu na vaga de jovens companhias independentes do Porto registada entre 2009 e 2012 – as que vão conseguindo sobreviver, subterraneamente, sabem que o livro de reclamações de hoje é mais ou menos igual ao de ontem. Falta de orçamento e espaços de trabalho e equipas em que três pessoas se desdobram em seis são cenários de baixo custo que unem duas (às vezes três) gerações condenadas a ganhar à bilheteira e a respigar possíveis figurinos nas casas dos amigos...

Rajadas de ar
Barcelona, Paris, Rio de Janeiro, Lublin, Londres, Grenoble. O último ano de Marco da Silva Ferreira, 29 anos, podia ser contado através dos carimbos no passaporte – e nem ele próprio sabe muito bem explicar como isto aconteceu. A sua primeira criação oficial enquanto coreógrafo, Hu(r)mano (também a primeira co-produção do Teatro Municipal do Porto), rendeu-lhe uma digressão fortíssima, tornando-o um dos nomes mais internacionais do momento da dança portuguesa.

Marcou presença no Aerowaves, em Barcelona, um dos principais festivais dedicados a artistas emergentes; no The Place, instituição fulcral da dança contemporânea em Londres; na 24.ª edição do Festival Panorama, referência maior no Brasil; e conquistou o segundo prémio do [re]connaissance, em Grenoble, considerada a competição de dança contemporânea mais importante de França – prémio que se traduz em mais duas datas internacionais de Hu(r)mano, duas residências naquele país e  financiamento para a próxima criação (Brother, 2017). Em Fevereiro estará no GUIdance, em Guimarães.

Antes de Hu(r)mano – um trabalho surpreendente de groove e vibração associado à memória das danças urbanas, com os corpos numa constante tensão entre a fisicalidade arfante e a contenção, a evasão e o prazer de dançar –, Marco já tinha dado provas como bailarino em criações de coreógrafos nacionais e internacionais como Victor Hugo Pontes, André Mesquita ou Hofesh Shechter. Considera que o renascimento do Rivoli e o avigorar da dança no Porto não foram para ele pontos impulsionadores, mas serviram como “uma rajada de ar”. “Ajudou-me a ganhar velocidade e divulgação. Através do Porto criaram-se links com outras estruturas, inclusive internacionais.”

Depois de um ano em que a Câmara Municipal do Porto fez da cultura uma bandeira política, sobretudo através do Teatro Municipal, resta ver se a euforia inicial se concretiza num impacto a nível estrutural, de formação de públicos e de novos criadores, com uma programação que registe pertinência local, nacional e internacional. “Falta acalmar, solidificar e encontrar o ritmo certo da cidade”, observa Marco. “Eu sei que se tenta o melhor, mas sinto que falta um acompanhamento mais calmo, constante e concreto dos criadores emergentes”, acrescenta.

“O próprio circuito parece um espectáculo que vai terminar em breve. Contudo, quero acreditar que não. Seria muito importante que se encontrasse um ritmo e que se começasse a investir mais em espaços de trabalho/criação, com condições físicas e de financiamento”, afirma também Mara Andrade, 28 anos, médica, coreógrafa e bailarina que apresentou no Campo Alegre Um Triste Ensaio sobre a Beleza, enigmático e envolvente solo onde faz o corpo reencontrar-se com palavra, explorando a fisicalidade dos estados emocionais (próxima paragem: 19 de Fevereiro, Teatro-Cine Torres Vedras).

Um maior investimento em espaços de trabalho, mais audições e circulação nacional, uma plataforma que congregue os artistas emergentes e uma secção na programação dos teatros que os integre mais regularmente são preocupações partilhadas entre os entrevistados, tanto do teatro como da dança. Tiago Guedes, director artístico do Teatro Municipal do Porto, diz que incluir os emergentes foi “um objectivo desde o início”. “Associámo-nos aos Palcos Instáveis, projecto da Companhia Instável [estrutura focada, desde 1998, em gerar oportunidades profissionais para jovens criadores e intérpretes de dança contemporânea] que está inserido na nossa programação e que serve de trampolim para depois co-produções com o Teatro. Além disso, respondemos a pedidos de residência no Campo Alegre e na sala de ensaios do Rivoli, dependendo da calendarização, e lançámos em 2015 as Bolsas de Criação”, sintetiza.

Este ano, as Bolsas de Criação vão dar lugar ao Campo de Batalha, um modelo “mais democrático e abrangente”. Ao contrário das bolsas, este projecto funcionará como um concurso, um open call nacional, mas com atenção redobrada aos artistas portuenses. Será também um programa mais regular: haverá apresentações todos os meses a partir de Setembro, data agendada para o arranque.

Ainda na saga das novidades, de 27 de Abril a 8 de Maio chega a primeira edição do festival Dias da Dança, organizado pelo Teatro Municipal em parceria com Serralves e a mala voadora, e com extensões a Gaia e Matosinhos. O programa inclui dois nomes internacionais, Raimund Hoghe e Ambra Senatore, mas “o objectivo central é dar foco aos artistas nacionais e locais, com tónica nos emergentes e nas estreias”, adianta Tiago Guedes. “Faltava um contexto específico para os programadores nacionais e internacionais descobrirem os criadores do Porto, que são pouco vistos”, acrescenta, notando ainda que “um apoio pequeno basta para estes jovens avançarem e pagarem à sua equipa”.

Bruno Senune, um dos jovens bailarinos que se destacaram no ano passado (visceralidade interpretativa, delicadeza enxuta) e que apresentará nos Dias da Dança a sua primeira criação, Kid as King, aborda precisamente a importância de ter condições mínimas, técnicas e financeiras. “Dá-me possibilidades de trabalhar com uma equipa e pagar-lhe. Se não conseguir pagar a alguém prefiro fazer sozinho. E claro que ter este tipo de apoio eleva o teu trabalho”, admite o bailarino de 23 anos formado no Balleteatro, que tem colaborado com Tânia Carvalho, Victor Hugo Pontes, Né Barros e Joclécio Azevedo.

Da instituição ao underground
2015 foi o ano em que a dança voltou a estar na ordem do dia por causa do regresso do Rivoli, cujo frémito, inclusive na aposta nos novos criadores, acabou por ofuscar o TNSJ – que finalmente parece começar a reagir, a acreditar na programação do primeiro trimestre deste ano. Quanto aos emergentes, Nuno Carinhas, director artístico da instituição, afirma que o TNSJ já tem “uma série de iniciativas” e que “pouco sobra em termos de calendário para apoiar mais”. Carinhas nota ainda que as salas de ensaio a cargo do teatro “estão sempre ocupadas com projectos da casa ou com pedidos de fora” e que não se podem “enterrar” estruturas ou criadores “só porque têm mais anos de trabalho”. Quanto à reivindicação de mais estágios de interpretação e integração dos emergentes nas peças, Carinhas diz que “é preciso haver elencos onde os jovens se possam enquadrar” (dá o exemplo recente de Turandot) e que se o TNSJ tivesse uma companhia residente esse processo seria mais operável.

Neste departamento, o TNSJ acolhe três iniciativas importantes, além dos exercícios finais das escolas (ESMAE, Balleteatro e ESAP): o já referido projecto NÓS, que possibilita a circulação profissional de alunos de teatro por Porto, Lisboa e Galiza com um espectáculo por ano; o Ginásio de Actores, gratuito, sob orientação de Nuno M Cardoso; e a fulcral Mostra desNORTE, “onde não existe uma selecção, tornando-se possível mostrar qualquer tipo de objecto artístico, finalizado ou em processo; uma ideia, uma experiência”, explica Mara Andrade, ligada à equipa da mostra.

Contudo, seria o momento certo para reavivar projectos como o ciclo 30 Por Noite (2008) e a mostra Corrente Alterna (2013), dedicados ao então novo (e invisível) teatro. “Não quer dizer que estes programas sejam regulares… Numa temporada não há possibilidade de nos desdobrarmos em tantos acontecimentos. Talvez devesse haver uma organização que congregasse as escolas, o Instituto da Juventude e os artistas”, diz Nuno Carinhas, revelando que em 2016/2017 é "provável" que o TNSJ venha a desenvolver "um trabalho mais sistemático sobre dramaturgia, com seminários”.

2015 foi também um ano mais produtivo para aqueles que, já não sendo emergentes, estão ainda no patamar dos jovens artistas. Houve mais visibilidade na dança e na performance – destacaram-se Joana Castro, Cristina Planas Leitão, Flávio Rodrigues, Catarina Miranda e Jonathan Uliel Saldanha –, mas no teatro também se registaram movimentações, como a entrada em curso da Carruagem, colectivo formado por Sara Barros Leitão, Diana Barnabé e André Santos, ou o nascimento do espaço A22, em Gaia.

Catarina Miranda e Jonathan Uliel Saldanha são uma dupla que tem vindo a afirmar-se cada vez mais. Protagonizaram alguns dos espectáculos mais admiráveis das últimas temporadas, um trabalho animista, de um certo medievalismo e de subtracção da realidade, que associa voz, gesto, som e arquitectura (Sancta Viscera TuaSilvo-Umbra ou Reiposto Reimorto). “O público está mais atento e aberto e pessoas como o Paulo Cunha e Silva e o Nuno Carinhas foram fundamentais para nos darem um voto de confiança”, aponta Jonathan. “Mas as pessoas esquecem-se de que havia imensa actividade na fase do Rui Rio, só que era totalmente subterrânea.” 

Nesse sentido, Catarina traz à conversa uma questão pertinente: “A diminuição dos espaços mais pequenos e alternativos”. Um sólido circuito underground onde a experimentação seja a regra, como acontecia em espaços como o La Marmita ou a Fábrica da Rua da Alegria, já encerrados. “Podes e deves errar num grande palco, mas quando esses espaços underground estavam mais vivos havia mais lugar para arriscar e experimentar”, assinala Bruno Senune.

Os porta-vozes do Teatro Municipal e do TNSJ concordam com essa lacuna. “Neste momento o Porto é uma cidade feita de instituições. Nós sentimos falta desses sítios porque são locais privilegiados para descobrir novos artistas”, admite Tiago Guedes, lembrando que a falta de diversidade de fontes de financiamento em Portugal (apoios regionais e mecenato, por exemplo) dificulta a sustentabilidade desses projectos mais subterrâneos. “É preciso haver esse tipo de espaços”, reforça Nuno Carinhas.As pessoas têm de reflectir como podem arranjar laboratórios, lugares onde fabricar e estar todos os dias. E convidar os mais velhos e institucionalizados para estarem com eles. Parece que o movimento é unívoco e não pode ser.”

Os artistas emergentes querem poder estar em vários lugares, poder errar em vários lugares, poder aprender e crescer em vários lugares. Afinal, o presente também é deles – o futuro, logo se vê. Mas como diz José Mário Branco em Inquietação (palavra que assenta muito bem nesta geração do “e amanhã?”), “há sempre qualquer coisa que está para acontecer”. 

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