“Estou muito confortável com a Constituição tal como ela se encontra”

Maria de Belém Roseira joga tudo na passagem à segunda volta das eleições de 24 de Janeiro. Defende uma presidência discreta, mas actuante no plano institucional e presente no domínio social. E está preocupada com o futuro da banca portuguesa.

Foto
Rui Gaudêncio

Aos 66 anos, Maria de Belém Roseira candidata-se a Presidente com a noção de que se ocupar este cargo têm de respeitar o "espaço próprio" do Governo e da Assembleia, mas deve ter uma atitude dialogante e colaborante, incluindo em matéria de negociação europeia. Frisa que as regras europeias foram mais dóceis para outros países intervencionados pela ajuda financeira. E teme pelo futuro dos bancos portugueses.

Defende uma reforma do sistema político?
O sistema político deve sempre levar ajustamentos. Aliás, sou defensora da cultura da avaliação para depois se ajustar as medidas e  se ajustar aquilo que for necessário.

Como fazer essa reforma?
Sente-se hoje um afastamento entre eleitos e eleitores. Temos que ponderar que alterações a introduzir para reforçar a relação.

Os partidos políticos estão a ultrapassados no actual padrão de organização enquanto estruturas de representação?
Não diria isso, diria, sobretudo, que a metodologia é que tem de ser ajustada para que as pessoas se sintam representadas pelos eleitos.

As eleições primárias, que dirigiu no PS são uma forma de tentar essa aproximação?
Acho que sim, aliás, tive ocasião de dizer na altura que senti uma enorme alegria das pessoas na participação na mesa de voto onde estive, que estava muito concorrida, sentia-se que as pessoas estavam a gostar de ter sido chamadas a participar numa escolha daquelas.

Em relação à eleição presidencial, o sistema devia ser mais selectivo, mais exigente sobre quem pode ser candidato?
O processo é muito burocrático e até costumo dizer com ironia que é muito predador do ambiente, porque obriga a tanto papel. Se calhar poderia ser substituído por metodologias electrónicas e desburocratizar pelo menos no sentido de diminuir a quantidade de formulários que é necessária em termos de suporte de papel.

Como é que vê a profusão de candidaturas nestas eleições?
Não vou criticar a profusão de candidaturas porque arranjar 7.500 assinaturas não é fácil. Para se legalizar um partido político em Portugal é o que se exige. Cada candidatura é quase que a formação de um novo partido político e, portanto, não é isso que está mal.

Concorda com o perfil constitucional do Presidente da República?
Concordo que tem de se exigir a nacionalidade de origem e uma idade mínima. Acho que estes requisitos são bons e têm que ser cruzar toda a parte instrumental para saber se qualquer pessoa pode candidatar-se ou se temos que introduzir os ajustamentos e regressamos à cultura de avaliação, uma vez que, cruzando aquilo que é exigido com as regras que estão impostas às candidaturas, poderá haver um afunilamento em relação à capacidade de participação.

Considera que se deve evoluir para um perfil em que o Presidente tenha mais poder?
O Presidente ou a Presidenta. Convictamente, sinto-me confortável com as competências que estão consagradas na Constituição. Considero que cada candidato é diferente do outro, é por isso que é muito importante analisar o perfil das pessoas para saber como é que elas vão fazer a interpretação dos poderes da Presidência que estão consagrados na Constituição. Cada ocupante do cargo dará o seu cunho pessoal.

Tem acontecido um pouco.
Sim, tem acontecido. Estes 40 anos de democracia e tirando a primeira parte que é uma parte especial em que ainda estávamos com o predomínio do poder militar sobre o poder político, a partir do momento em que se entrou num registo de normalidade democrática cada um dos Presidentes imprimiu o seu próprio estilo ao exercício da Presidência.

O Presidente deve assumir o papel de facilitador de consensos entre a esquerda e a direita?
O Presidente tem nitidamente essa missão porque o Presidente deve investir na estabilidade e ao investir na estabilidade tem que procurar entendimentos entre os partidos políticos, deve esforçar-se nesse sentido e fazê-lo de maneiras várias. Nós sabemos que, quer uma actuação publicitada, quer uma actuação não publicitada, pode ajudar realmente a diminuir um clima de crispação e a conseguir que as pessoas se entendam em relação a determinadas matérias cujo entendimento é indispensável para garantir alguma estabilidade das políticas.

Mas muito desse trabalho será sigiloso, de bastidores.
É a tal magistratura de influência da Presidenta.

Se for eleita qual a sua prioridade?
A minha prioridade é garantir uma relação mais forte entre as pessoas e a Presidência, uma representação das pessoas e dos seus problemas. É muito importante que as pessoas encontrem na Presidente alguém que as entenda, alguém que seja capaz de as sentir. Esta noção de uma grande relação de confiança entre Presidente da República e os portugueses e as portuguesas quer se encontrem aqui quer na diáspora acho que é muito importante.

Como reforçará essa relação?
Através de deslocações várias por todo o país e por todos os sítios onde existem comunidades portuguesas. Mas faria isso mesmo também com uma gestão diferente do acesso à Presidente da República. Quando tive responsabilidades governativas, dei-me muito bem com a não existente de interfaces entre, na altura, a ministra e as pessoas que queriam falar com a ministra. É muito importante que tenhamos a capacidade de ultrapassar as dinâmicas que existem nos serviços de apoio à Presidência, porque eles muitas vezes constituem um biombo, uma barreira de relação entre as pessoas e quem exerce o cargo. E como eu comecei muito cedo a ser muito crítica do controlo que muitas vezes se faz do exercício das funções, acho que é muito importante estarmos atentos furarmos essas barreiras.

Mas essa alteração de modelo de Presidência, no seu caso, seria também ao nível institucional? Como é que tenciona relacionar-se com a Assembleia?
Depende muito do que acontecer durante o mandato. Tenho uma grande experiência parlamentar e, portanto, é natural que valorize muito a Assembleia e o papel da Assembleia. Posso usar mais as mensagens da Assembleia da República, posso usar mais alguns instrumentos, designadamente a presença do Presidente da República quando for convidado a estar em algumas sessões. Pode ser que se justifique uma presença mais assídua do Presidente da República na AR.

Se for eleita pensa reunir por exemplo com o presidente da Assembleia da República?
Com certeza. Acho que é muito importante até porque o Presidente da Assembleia da República é um primos interpares e portanto pode fazer chegar à Presidenta da República um conjunto de questões, questões isoladas que ele entenda que devam ser do conhecimento da Presidenta da República.

Pretende manter as reuniões semanais com o Governo?
As relações com o Governo têm uma rotina que é uma rotina semanal, mas que a agenda diária vai ditar se tem de ser mais intensa, se para além dessas reuniões vai ter de haver contactos por outras vias.

Muitas vezes há contactos entre os ministérios e os serviços da Presidência sobre legislação.
Os serviços da Presidência fazem uma análise não só da legislação que chega para promulgação.

Faz sentido presidir ao Conselho de Ministros?
Se a Presidente da República for convidada para [isso] é porque o Governo tem interesse nisso e eu acho que se deve dizer que sim. Lembro-me quando integrei o primeiro Governo de António Guterres, Mário Soares foi presidir a um Conselho de Ministros que tratava de Assuntos do Mar.

Mas isso aconteceu de uma forma episódica. Acha que deve ter um carácter mais regular?
O Presidente vai se o Governo o convidar. Aí, nós também devemos saber respeitar o espaço próprio de intervenção do Governo e o Presidente não pode star com atitudes que possam ser interpretadas como interferência no poder governativo. Acho que se deve fomentar uma boa relação entre os vários órgãos de soberania e no quadro de cooperação institucional pois sempre que o Governo entenda convidar a Presidente da República para estar presente num Conselho de Ministros com certeza com todo o gosto.

É favorável a uma revisão constitucional?
Estou muito confortável com a Constituição tal como ela se encontra. Eu própria participei em revisões constitucionais ao longo das legislaturas que integrei e considero que estamos num quadro de estabilidade constitucional que, em meu entender, não necessita de revisão. De qualquer das maneiras a iniciativa é sempre da Assembleia da República e quem tem capacidade para ponderar e decidir sobre essa matéria é a AR. Temos que deixar cada órgão exercer as suas competências sem interferências do Presidente da República.

Na sua opinião a defesa do Estado Social, tal como está na Constituição, é viável?
É viável e, aliás, todos os acórdãos do Tribunal Constitucional foram nesse sentido mesmo quando concluíram pela inconstitucionalidade de algumas normas do Orçamento [do Estado] na legislatura anterior.

Concorda com a inscrição constitucional da regra orçamental do Tratado que impõe 3% do défice?
Não concordo, acho que isso é uma regra instrumental que não deve estar na Constituição da República. Aliás, quem tem competência para decidir o que deve estra na Constituição ou não é a Assembleia da República.

Em relação à divida pública, há uma divisão no país ao nível partidário sobre esta questão. Considera que o Governo deve renegociá-la?
Nós assistimos a alguns sinais de abertura a partir da eleição do novo presidente da Comissão Europeia no sentido de alguma crítica em relação a medidas que foram conduzidas pela União Europeia, mas também até agora ainda não vimos nenhuma alteração muito substancial. Mas cabe ao Governo negociar aquilo que é melhor defesa dos interesses do país. Não deixo de referir que no quadro dos apoios que foram dados a vários países os programas de assistência foram em alguns conteúdos iguais e noutros aspectos diferentes. Refiro, por exemplo, que o apoio à banca espanhola foi dado num quadro de taxa de juro muito reduzida - cerca de 0,5% e não entrando para a dívida pública.

Portugal foi prejudicado nessa perspectiva?
Os países têm de, no âmbito da sua participação nos órgãos da União Europeia onde isso é definido, [ir] requerendo as condições que são mais favoráveis para o seu país, porque o impacto das decisões que sejam muito onerosas para nós será sempre no enfraquecimento das condições de vida das pessoas.

As suas palavras deixam transparecer uma crítica à solução encontrada para o Banif, no sentido de a Comissão Europeia ter proibido a integração na Caixa Geral de Depósitos.
O Governo herdou este problema com pouco espaço temporal para o resolver e o que se sabe é que o Governo preferia outra solução e que esta foi imposta pelas instituições europeias. Aquilo que me apoquenta mais, que me preocupa mais, é ver na União Europeia um movimento no sentido de favorecer grandes instituições bancárias o que poderá levar a prazo a que pura e simplesmente deixemos de ter instituições de crédito nacionais, independentemente das participações no capital da banca estrangeira. E isso é que eu considero que é altamente desfavorável para os interesses da nossa economia. Vejo isso com muita preocupação e se fosse Presidente da República com certeza que seria uma matéria que no âmbito da influência do Presidente da República tentaria influenciar o Governo. A defesa do interessa nacional vai no sentido de que nós tenhamos uma banca nacional.

Se for eleita Presidenta da República pretende ter uma participação activa no apoio ao Governo na defesa das posições portuguesas na União Europeia?
Deve haver cooperação institucional do Presidente da República na defesa dos interesses nacionais.

Neste momento há uma questão que preocupa e Europa e preocupa o mundo que tem a ver com os refugiados. Qual é o papel que considera que a União Europeia e especificamente Portugal devem ter na questão dos refugiados do Médio Oriente?
A Europa tem que continuar a ser a terra dos Direitos Humanos, o espaço geográfico dos direitos, da sua defesa e da sua promoção. Agora também acho que a União Europeia deve combater as causas que têm dado origem a este fenómeno, porque as pessoas estão a sair das suas terras porque não tem condições de viver nos seus países. A União Europeia tem que ter uma política de abertura ao acolhimento de refugiados, mas também deve ter uma actuação muito corajosa no combate às causas que favorecem este [problema].

 

Sugerir correcção
Ler 6 comentários