Meritocracia ou clientelismo?

O não cumprimento dos rácios quanto aos professores com tenure e o poder discricionário dos responsáveis institucionais na abertura de concursos não permitem premiar o mérito nem estimular a liberdade e a autonomia pedagógica e científica.

Há por aí uma “Petição pelo aumento das garantias de imparcialidade nos concursos da carreira docente universitária”. Não há a dúvida de que foca um tema crucial. Todavia, dá-nos uma perspetiva reducionista dos problemas relacionados com a seleção e progressão por mérito ao nível desta carreira. A petição começa por referir a endogamia como um fator prejudicial à produtividade científica. Depois cita o novo ECDU (Estatuto da Carreira Docente Universitária) de 2009 como um ponto de viragem no ajustamento, por elevados padrões de qualidade, dos concursos para a carreira docente universitária: porque passaram a ser exigidos concursos internacionais; porque os júris dos concursos passaram a ser maioritariamente externos à instituição que abre o concurso. Certíssimo! Porém, daqui passam para o (suposto) problema central do funcionamento efetivo dos júris em Portugal, mesmo com elementos maioritariamente externos: “em muitos concursos académicos vigora o princípio, “hoje votas no candidato que me interessa a mim e amanhã eu voto no candidato que te interessa a ti", (…), assim perpetuando as elevadas taxas de endogamia que caracterizam as universidades portuguesas.” E propõem: que os júris passem a ser “compostos maioritariamente por individualidades externas de instituições estrangeiras”. A ideia nem é necessariamente má, mas dá uma perspetiva muito redutora dos problemas por detrás da insuficiência de critérios meritocráticos nos concursos para acesso e progressão ao nível da da carreira docente universitária, nomeadamente porque omite o que está a montante mas também porque omite as diferenças entre as normas e as práticas ao nível dos concursos.

Em primeiro lugar, as condições a montante. Uma das inovações da nova legislação do ensino superior, é a instituição do regime de segurança reforçada no emprego associado às posições de professores associados e catedráticos. A tenure tem como objetivo primordial garantir o direito à liberdade académica: “protege os professores e investigadores quando eles divergem das opiniões dominantes, quando abertamente discordam de autoridades de qualquer tipo, ou despendem tempo em tópicos menos populares. (…) O objetivo da tenure é permitir que as ideias originais tenham melhores condições para emergir, dando aos investigadores a autonomia intelectual para investigar os problemas e as soluções que eles acham mais adequadas e para as reportarem honestamente (wikipédia em língua inglesa).” Dada a centralidade da tenure para garantir a liberdade e autonomia do trabalho pedagógico e científico, não admira que o ECDU tenha estipulado que as instituições universitárias devem ter uma percentagem entre 50% a 70% de professores associados e catedráticos no conjunto do corpo docente de carreira. Note-se que a tenure é ainda um instrumento de valorização do mérito. O primeiro problema começa precisamente aqui: as instituições não cumprem o estipulado no ECDU quanto ao peso relativo dos professores com tenure, embora umas mais do que outras (por exemplo, na minha, o ISCTE-IUL, a percentagem é extraordinariamente baixa, entre 25% e 30%, mas mais próxima do limite inferior tendo em conta que muitos novos lugares têm sido ocupados transitoriamente por pessoas à beira da reforma que depois não são substituídas; noutras universidades públicas do ranking do ISCTE-IUL, a percentagem anda pelos 40%). E nem tudo é explicável pelos constrangimentos externos: na minha universidade muita gente se têm reformado sem ser substituída, e imagino que tal não seja caso único. No ISCTE-IUL há mesmo várias áreas científicas com os 3 ciclos de estudos que não têm um único professor catedrático, por vezes nem sequer um único professor associado, algo a que a legislação e a agência de auditoria e acreditação deviam dar mais relevo nas suas funções de regulação da qualidade do ensino superior em Portugal. A tudo isto soma-se a mudança operada com o ECDU de dar todo o poder de abertura dos concursos aos responsáveis máximos das instituições. Ou seja, antes havia alguma previsibilidade nas carreiras e, assim, quando as pessoas se reformavam dos lugares de topo os potenciais candidatos ao lugar podiam pedir a abertura de concurso; agora não, pelo que assistirmos a lugares que vagam e que depois ficam “eternamente” por preencher… As duas coisas juntas (não cumprimento dos rácios quanto aos professores com tenure; poder discricionário dos responsáveis institucionais na abertura de concursos) retiraram previsibilidade nas carreiras docentes universitárias, não permitem premiar o mérito nem estimular a liberdade e a autonomia pedagógica e científica, pelo contrário estimulam a domesticação dos docentes pelos responsáveis institucionais. Ora é este nó górdio do défice meritocrático no sistema universitário português que a dita petição ignora completamente.  

Em segundo lugar, há a diferença entre a letra e o espírito da lei e as práticas efetivas, das instituições e dos júris. Por exemplo, apesar de a lei determinar que “a especificação da área ou áreas disciplinares não deve ser feita de forma restritiva, que estreite de forma inadequada o universo dos candidatos”, não é invulgar vermos editais que mais parecem “concursos com fotografia”. Mais, apesar de o ECDU estipular as condições de acesso aos concursos para professor catedrático (ter doutoramento há mais de cinco anos e ter uma agregação), há universidades a estipular outras condições de acesso entendidas como mínimos de “mérito absoluto” para acesso à categoria, ainda que este seja entendido não como característica global do curriculum a avaliar pelo júri (como seria expectável) mas sim como o preenchimento de um conjunto de fatores entendidos de forma disjuntiva e cumulativa. Neste particular, o que está em causa é o poder dos membros dos júris para se insurgirem contra este tipo de entorses ou, pelo contrário, capitularem perante cálculos mais mesquinhos. É duvidoso que sejam os estrangeiros, amiúde desconhecedores das regras legais do país, que venham contestar “a imposição dissimulada” de editais que muitas vezes violam a letra e o espirito da lei. Até porque uma das táticas das universidades é propor editais à discussão que depois constrangem a atuação dos próprios membros dos júris, seja por desatenção, desconhecimento ou negligência daqueles no momento inicial. E este problema é crucial. Por exemplo, na minha universidade, que se intitula como uma research university, está em discussão um novo regulamento em que o acesso ao topo da carreira (catedrático) é menos exigente em termos científicos do que no acesso à categoria imediatamente inferior (associado); ou ainda, em que condições que não dependem da vontade, empenho e competência pedagógica e cientifica dos docentes, como é o caso da “gestão académica” (que depende sobretudo do apoio político interno, da popularidade), tenham um grande peso no acesso ao topo da carreira. É duvidoso que este tipo de problemas se resolvam com júris maioritariamente estrangeiros. Antes exigem mais e melhor legislação e regulação, e júris mais atentos e assertivos, sem medo de fazer ondas e não cultivar sempre amizade com Deus e o Diabo.

Nota de despedida:

Ao fim de cerca de dez anos como colunista regular do PÚBLICO, termino hoje a minha coluna. Em primeiro lugar, queria agradecer o convite inicial para escrever aqui (ao José Manuel Fernandes e à Bárbara Reis). Em segundo lugar, gostaria de declarar que foi sempre um prazer e uma honra escrever no PÚBLICO ao longo de todos estes anos e de colaborar com grandes profissionais do jornalismo, nomeadamente o José Vitor Malheiros e o Nuno Pacheco (mais diretamente ligados à coluna de opinião), os quais não só me deram sempre total liberdade para escrever o que escrevi, como mostraram sempre grande disponibilidade no apoio à coluna. Num panorama jornalístico geral cada vez mais afunilado ideologicamente e de qualidade técnica em erosão, o PÚBLICO soube manter-se como um referencial de qualidade, plural e equilibrado; daí o meu gosto especial em escrever neste jornal. Espero que a crise seja passageira e desejo as maiores felicidades ao jornal e a todos os seus profissionais. Por último, gostaria de agradecer a atenção de todos os leitores que, ao longo destes dez anos me foram lendo e, por vezes, enviando mensagens (de apoio e/ou de crítica).

Politólogo, Professor do ISCTE-IUL

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