Teremos sempre Cadaqués

Milena Busquets já foi comparada a Françoise Sagan por causa de Também isto passará, obra que irá ser adaptada ao cinema e causou sensação na Feira do livro de Frankfurt em 2014.

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PATRICIA MARTINS

Naquele Outubro de 2014, También esto pasará, que foi publicado em Portugal com o título Também isto passará (ed. Jacarandá), era um dos livros-acontecimento da Feira do Livro de Frankfurt onde chegou já com contrato para vários países – traduções para mais de 30 línguas – e ali foi aberto um leilão para a disputa dos direitos em língua inglesa.

A obra, que conta a história de Blanca, mulher de 40 e tal anos que depois da morte da mãe viaja para Cadaqués, na Catalunha, para uma casa de família, com os filhos, os dois ex-maridos, o amante e um grupo de amigos, é o segundo romance da catalã Milena Busquets. A escritora é filha da editora e também escritora Esther Tusquets (1936-2012), que durante 40 anos esteve à frente da editora Lumen - este livro foi escrito depois da morte desta, que sofria de Parkinson.

“Quando ela ficou doente disseram-me: ‘Esquece quem era a tua mãe porque ela vai desaparecer’. Mas não desapareceu completamente. Se calhar é melhor desaparecer-se porque eu via a lucidez e a dor. Nos últimos dias ela sabia que estava a morrer”, conta ao Ípsilon Milena, que precisou de um ano para se refazer da perda da mãe. Depois, de repente, numa manhã, escreveu o primeiro capítulo de Também isto passará sem saber bem o que aquilo poderia vir a ser. Era uma época em que estava sem trabalho - não tinha traduções para fazer nem pedidos de artigos para a imprensa – e muito rapidamente percebeu que poderia estar ali o início de um livro.

Queria poder mentir
“Tinha de fazer qualquer coisa, não podia perder tempo”, explica Milena, nascida em Barcelona, em 1972 - estudou no liceu francês, é licenciada em Arqueologia pela University College de Londres e trabalhou no grupo editorial Bertelsmann antes de vender um apartamento que tinha em Cadaqués, Espanha, para criar uma pequena editora que a levou à falência. Com tal vida, podia ter optado por escrever memórias em vez de um romance. Mas não o quis fazer. “Tinha a sensação de que se escrevesse uma coisa muito biográfica ficaria muito ligada à realidade e seria forçada de dizer a verdade. E queria poder mentir. Os escritores são uns mentirosos,  acredito nisso acima de tudo.”

Apesar de ter partido da realidade – por exemplo, o primeiro capítulo descreve o que aconteceu no enterro da mãe, que foi amplamente noticiado na altura nos meios de comunicação espanhóis -, este não é um livro autobiográfico.

Não deixa de ser intrigante saber que a própria Esther Tusquets, tal como a filha, também escreveu uma história em que falava da relação com a sua progenitora. “Aparece em Correspondencia privada (Anagrama) é uma carta à mãe dela, muito mais dura do que a minha”, diz Milena, que não pensou nesse conto quando decidiu escrever o romance.

“A minha mãe tinha uma relação diferente com a mãe dela. Também estava apaixonada mas tinham uma relação muito mais conflituosa. A minha avó era uma pessoa muito difícil, embora de uma maneira diferente da minha mãe. Só gostava de homens, adorava o meu tio [o arquitecto e pintor Oscar Tusquets], tinha uma relação difícil com as mulheres e muito fácil com os homens. Era diferente. Quando comecei a escrever o livro só queria dizer que tinha amado a minha mãe, o resto não me importava nada”.

A mãe era para Milena, “o guarda-chuva contra o mundo”. Quando tinha um problema, pequeno ou grande, ia ter com ela, contava-lhe o que se passava e com uma só frase ela tirava-lhe o medo e as preocupações. No entanto a escrita deste livro não serviu de terapia à autora nem a fez aprender nada. “Quando escrevemos alguma coisa já o sabemos, senão não o escrevemos”, defende.

Também isto passará, que era descrito em Frankfurt pela sua agente literária como uma mistura entre Bom Dia Tristeza, de Sagan, e O Diário de Bridget Jones, de Helen Fielding, teve recentemente os direitos de adaptação ao cinema comprados pelo produtor argentino Daniel Burman (também realizador: El Abrazo Partido, Urso de Prata em Berlim 2004). Este explicou à Variety que sempre se sentiu fascinado pelas relações entre mães e filhas – que podem ir do amor ao ódio extremo - e viu neste livro um óptimo ponto de partida para um filme. “Um universo em que uma mulher procura desesperadamente encontrar nas relações que tem com todos os homens da sua vida, alguma coisa parecida com o amor que sentia pela mãe”.

Sabe-se agora que o filme poderá vir a ser um dos próximos projectos da realizadora Lucrecia Martel (A Mulher sem Cabeça) e que Milena Busquets quando for à Feira do Livro de Buenos Aires, em Abril, aproveitará para ter reuniões com o produtor e com a realizadora.

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PATRICIA MARTINS

Outra das coisas que atraiu o realizador argentino foi a maneira como o sexo é abordado na obra. Há nele a frase emblemática – “o contrário da morte não é a vida, é o sexo” – e desde o princípio do livro que a personagem Blanca utiliza o contacto físico para se sentir viva. “Quando perdemos alguém é muito fácil aproximarmo-nos da morte. Aos mortos é preciso tê-los presentes, mas é preciso ter uma distância razoável senão perdemos a razão”, justifica a autora. “Estás triste? Fode. Dói-te a cabeça? Fode. O computador avariou-se? Fode. Estás na ruína? Fode. A tua mãe morreu? Fode. Por vezes funciona.” (pág 13), é um dos trechos do livro.

“É verdade, digo-o no romance, o sexo obriga-te a estar presente no instante. A dor também te obriga a isso. É o outro lado da moeda. A dor física obriga-te a estares presente mas quanto ao resto, [no luto], estamos nas nuvens. Há o risco de ficarmos muito próximas de pessoas que amamos e que já não estão cá. Blanca utiliza o sexo e o contacto físico para se lembrar que estamos aqui, mesmo que a nossa cabeça esteja em Cadaqués, nos anos 1970, ou a pensar nas coisas que fizemos bem ou que fizemos mal. Dizem-me muitas vezes que a personagem é muito promíscua, não estou de acordo”.

Também não concorda quando lhe dizem que na vida de Blanca, tudo passa… os amigos, a mãe, os amantes. “No fundo, o que o livro quer mostrar é que as coisas importantes não passam. As pessoas que amei, continuo a amá-las mesmo que já não me amem. Amar alguém é um investimento muito grande. Mesmo que seja durante três minutos. E isso fica. Senão não nos resta nada. Se tudo passa, se realmente tudo passar, então é um desastre absoluto.”

Apesar de poder ser classificado como literatura light, Também isto passará tem momentos fortes, capazes de fazer com que leitoras se identifiquem mesmo que não tenham passado pela morte de uma mãe. O último capítulo é um desses casos. “Chorei no fim. Foi duro de escrever”, diz a autora. Mas valeu a pena. Milena que sempre se sentiu bizarra, porque tinha uns pais muito liberais, andava numa escola burguesa, e era filha de divorciados, deu-se conta com a reacção dos leitores de que afinal não é tão marginal assim. “Vivo sozinha com os meus filhos, nunca tive uma vida muito convencional, sempre fiz o que me apetecia, e muitas leitoras vieram ter comigo, dizer: ‘Eu sou a Blanca’. Fez-me bem, pelo menos fez-me sentir menos sozinha”, confessa.

Outro dos temas universais abordados no livro é a ligação que temos aos lugares onde passámos a infância. No caso de Milena, foi em Cadaqués, na Catalunha, muito perto de Port Lligat onde o pintor Salvador Dalí (1904-1989) tinha uma casa.

“Acredito que todos temos um Cadaqués. Todos temos um lugar onde fomos felizes. De uma certa maneira é o paraíso perdido. É a velha história. E é o lugar onde queremos regressar ou onde vamos com as nossas recordações. É o lugar onde a vida não podia ser melhor. E isso tinha vontade de dizê-lo no livro”, assegura. “Não é que Cadaqués seja uma boa vila, um lugar seguro… mesmo se fosse a vila mais feia de Espanha, teria sido o meu lugar, o sítio onde descobri a liberdade, o amor, muitas outras coisas.”

Mas Cadaqués pode ser também perturbador. “É como se fosse uma ilha. Conto um pouco isso no romance, ou bem que se chega a Cadaqués e se diz que ‘se tem a sorte de estar ali e se considera aquele o nosso lugar’ ou bem que nos acontece o contrário. Nas memórias de David Hockney, o pintor britânico de que gosto muito, ele conta que chegou a Cadaqués e foi um desastre absoluto. Vi acontecer isso muitas vezes em Cadaqués. Mesmo eu - ou pessoas perfeitamente civilizadas - depois de cinco dias em Cadaqués podem ficar loucas. Não há comboio, a estrada para lá se chegar é muito complicada, tem muitas curvas, e há o vento, é um lugar muito intenso mas é também um lugar muito especial...” 

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