Trajectória de um compositor radical

O peso do seu legado e da sua personalidade permanecem como peças chaves dos múltiplos percursos coexistentes na História da Música do século XX.

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AFP / MIGUEL MEDINA

Os primeiros anos de Pierre Boulez foram marcados pela música e pela matemática, dois domínios para os quais apresentava aptidões precoces. As expectativas do seu pai, um engenheiro ligado à indústria do aço na região de Lyon, em relação ao futuro profissional do jovem Pierre orientavam-se para o campo da engenharia, mas quando chegou a Paris em 1942 preferiu trocar a Escola Politécnica pelo Conservatório de Música.

Os estudos anteriores de piano mostraram-se insuficientes no exame de entrada, mas no domínio da teoria musical e da composição rapidamente começou a brilhar e três anos depois obteve o primeiro prémio na famosa classe harmonia de Olivier Messiaen, na qual dava igualmente provas de excepcionais habilidades no domínio da análise musical. Pierre Boulez estudou contraponto como aluno particular de Andrée Vaurabourg, casada com o compositor Arthur Honegger, e quando René Leibowitz (1913-1972), antigo aluno de Schoenberg, começou a introduzir a música dodecafónica em França, não hesitou em recorrer aos seus ensinamentos.

Desde cedo, Pierre Boulez perseguiu a utopia de uma linguagem musical objectiva, baseada numa concepção rigorosa e numa estrutura conscientemente ordenada de relações internas. A lógica e a clareza que procurava no campo da composição musical transpareciam igualmente da sua arte meticulosa como maestro, onde os mínimos detalhes eram controlados e depurados com extrema precisão. Considerando que os compositores dos inícios do século XX não tinham levado até às últimas consequências o abandono da tonalidade — “tinham-se colado aos princípios do passado ao nível da estrutura musical e da expressão em vez de terem aproveitado a oportunidade para repensar a música a partir de novos princípios” — resolve tomar como sua essa tarefa.

A necessidade histórica do uso da atonalidade e o corte com o neo-classicismo foram premissas que tomaram forma logo desde as suas composições  iniciais (Notations, Sonatina para Flauta, Primeira Sonata para Piano, Le visage nuptial), mas as primeiras obras que fizeram a reputação de Boulez como compositor foram e Le soleil des eaux (1947) e a monumental Sonata para Piano nº2 (1948). A primeira interpretação desta última obra em Darmstadt, em 1952, por Yvonne Loriod, foi um acontecimento. O próprio Boulez explicou mais tarde as suas intenções do seguinte modo: “Foi provavelmente a tentativa da 2ª Escola de Viena para reviver antigas formas que me fez querer destruí-las: tentei destruir as bases da forma-sonata no primeiro andamento; desintegrar o andamento lento através do uso de um tropo, assim como a forma repetitiva do scherzo através do recurso a variações. Finalmente, no último andamento tentei demolir os princípios do género da fuga e do cânone.”

Estimulado pelas últimas criações de Webern e pelos Quatre études de rythme (1949–50) de Messiaen, Boulez dedicou-se a desenvolver as técnicas do serialismo integral, ou seja, a ideia de que a série de 12 sons aplicada às notas se deveria estender aos restantes parâmetros musicais, nomeadamente ao timbre, à duração e à intensidade. O auge da aplicação do serialismo integral deu-se com Structures I (1952) para dois pianos, neste caso dedicando uma série aos “modos de ataque” do som pelos intérpretes em vez de aos timbres.

Outra das suas obras significativas dos anos 50 foi Le marteau sans maître (1953–5), baseada na poesia de René Char e destinada uma voz de contralto e a seis instrumentistas: flauta alto, xilomarimba, vibrafone, percussão, guitarra e viola. O fascínio pelo seu exótico colorido instrumental, que emerge da concepção relativamente estática do discurso, contribuiu para uma ampla aceitação junto do público que, fora dos circuitos especializados, considerava a sua obra de difícil e complexa audição.

O conceito de “obra aberta” e de “work in progress” foi outro caminho explorado por Boulez nessa época com destaque para a Sonata para Piano nº 3, iniciada em 1956. Entre as peças marcantes das décadas seguintes encontram-se Pli Selon Pli - “Portrait de Mallarmé”, para soprano e orquestra (1957-1962; 1984); Eclat para 15 instrumentos de 1965, convertida em Eclat-Multiples em 1970); ...explosante-fixe... de 1971, revista e incorporada em Mémoriale em 1985; Rituel in Memoriam Bruno Maderna (1975); Messagesquisse, para violoncelo solo e seis violoncelos (1976); Notations (1978); e Répons (1981-84), primeira obra de peso com recurso aos meios tecnológicos disponibilizados pelo IRCAM, projecto que mais uma vez aspirava a criar uma nova linguagem musical a partir de uma base racional.

A tenacidade com que Boulez defendia as suas ideias vanguardistas no campo da composição nos anos 1950 e 1960 e a sua postura irredutível ligada à ideia de progresso na história da música — atitude que manteve também inicialmente nas escolhas dos repertórios que dirigia como maestro — foram-se diluindo gradualmente nas últimas fases do seu percurso artístico, mas o peso do seu legado e da sua personalidade permanecem como peças chaves dos múltiplos percursos coexistentes na História da Música do século XX.

 

Crítica de música

 

 

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