À imagem do Homem

Homo Spectator não é uma história do espectador, nem mesmo da imagem, é uma reflexão sobre meia-dúzia de questões que, ao longo das mais de 300 páginas, se revelam essenciais.

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Marie-José Mondzain obriga o leitor a tactear, a perder-se, a duvidar, a interrogar-se — e a interrogá-la

Discute-se há muito o suposto hermetismo de certa escrita académica, de como esta se põe “fora do mundo”, deixando o leitor não-iniciado perplexo, se não mesmo frustrado. Do mesmo modo, o trabalho do crítico menos versado nesta “linguagem” é dificultado por essa “ininteligibilidade”. Serve este intróito para desculpar quaisquer imprecisões (ou incompreensões) na presente recensão, mas sobretudo para realçar uma das qualidades do livro de Marie-José Mondzain: o mistério. Como escreve na introdução a Homo Spectator, a filósofa francesa, diferenciando-se dos seus pares, recorre amiúde à teologia, partindo de textos religiosos, da Bíblia à Carta aos Coríntios de São Paulo, para trabalhar os conceitos à volta da imagem — neste caso, como o título do livro indica, com maior incidência no do espectador. No entanto, se põe em causa o papel de Deus, ou melhor, afirma a necessidade do distanciamento do Homem face à ideia de Deus (um abandono da crença) para se assumir como criador e espectador de imagens, há qualquer coisa de sagrado, por exemplo, quando a autora discorre sobre o visível e, mais ainda, sobre o invisível. Por outro lado, Mondzain como que se deixa impregnar por esses mesmos textos religiosos, assumindo um estilo quase parabólico e, por vezes, tão críptico como o de São Paulo.

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A escrita em Homo Spectator pode ser densa, até mesmo tortuosa, mas parece corresponder ao espírito da obra e ao próprio pensamento da autora. Esta recusa-se a fixar quaisquer conceitos ou a deixar uma visão definitiva sobre os mesmos. Prefere explorá-los por aproximações, circularmente, voltando a eles repetidamente, justapondo-os uns aos outros — como se só os pudesse definir pelo seu oposto. A cada repetição, o véu vai-se descobrindo, sem nunca os descobrir por completo (daí talvez a ideia de mistério), porque tal os menorizaria (“a imagem deixa sempre a desejar”). O leitor vê-se, pois, obrigado a seguir o caminho traçado por Mondzain, tacteando, perdendo-se, interrogando-se, interrogando-a, duvidando. Ora, para a autora, a dúvida é uma das condições essenciais do espectador. De certa forma, um discurso mais corriqueiro (mais “fácil”) desvirtuaria a sua proposta. Ou seja, pode discutir-se a forma quanto se quiser, mas, pelo menos neste livro, serve perfeitamente o conteúdo.

Homo Spectator divide-se em duas grandes partes. Na primeira, Marie-José Mondzain trata das questões da coragem e do medo. Coragem de criar (de fazer ver), pois, como imagina na phantasia dos primeiros capítulos, isso implicou que o primeiro homem a pintar uma imagem, na caverna de Chauvet, tivesse de se afastar de si mesmo (a retracção como primeiro passo para o gesto criativo), de pensar o outro, de inventar os espectadores futuros. O medo, esse, joga-se em dois campos: o da iconofobia e o da fobocracia. O medo das imagens desenvolveu-se sobretudo nas religiões monoteístas, nomeadamente no judaísmo, sendo que a iconoclastia está bem expressa no Antigo Testamento, enquanto o catolicismo, por sua vez, tentou, a partir de certa altura, ter controlo absoluto sobre as imagens (e até usar as imagens como uma linguagem universal para passar a sua mensagem). No entanto, para Mondzain, uma versão mais funesta dessa tentativa de domínio é a espécie de fascismo visual que grassa nestes dias, construído à base das imagens do medo (da violência, do terror), omnipresentes e entorpecedoras. “Constrói-se uma sociedade de voyeurs por satisfazer, de modo a eliminar comunidade de espectadores que cultivam os lugares de insatisfação próprios do desejo”, escreve a dada altura, demarcando bem o público deste espectáculo, adormecido e em falência criadora, e o espectador, que à dúvida junta a insatisfação. Ou, como escreve mais à frente, sintetizando o tema do medo: “a anorexia e a bulimia são, como já se suspeitava, patologias da imagem”.

A segunda parte do livro funda-se ainda mais na teologia. Para falar da separação da língua, de como a desintegração da língua única na Babel das mil falas representa a superação do estado de infantilidade do Homem, a sua autonomia perante Deus, Mondzain socorre-se da já citada Carta aos Coríntios. De seguida, toma a ressurreição de Cristo para tratar a questão da filiação e da necessidade do luto (da despedida ao morto, o que já não tem imagem). A Pietà, momento que existe sobretudo como imagem (em quase todos os Evangelhos, Maria está ausente na hora da morte de Jesus), representa o impasse melancólico, um estado transitório (petrificado na escultura de Miguel Ângelo), impeditivo da ressurreição. A imagem é movimento (“o espectador muda incessantemente de lugar”) e não sobrevive à paralisia da morte. A autora apenas se desvia dos textos cristãos quando se ocupa da dicotomia poder vs. autoridade, embora use para explicar essa diferença os termos “crença” e “confiança”. Para esta, tanto o poder como a autoridade se baseiam no domínio sobre outrem, mas só a segunda com o consentimento deste (“um sujeito capaz de desobedecer”). Qual pescadinha de rabo na boca, Mondzain volta assim ao medo e às tentativas de controlo da imagem.

É no meio destas permanentes tensões (visível vs. invisível; confiança vs. credulidade; angústia vs. medo) que o Homo Spectator vai lutando por subsistir. O livro de Marie-José Mondzain mostra os escolhos, os sobressaltos dessa espécie em perigo de extinção. Ou, no mínimo, ameaçada pelo domínio da imagem rígida e utilitária (quando esta se quer frágil, criticável, móvel). Homo Spectator não é uma história do espectador, nem mesmo da imagem, é uma reflexão sobre meia-dúzia de questões que, ao longo das mais de 300 páginas, se revelam essenciais. 

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