Em último caso, culpar a "Europa"

A "Europa" – entre aspas – substituiu "a choldra" como explicação de recurso para as nossas desventuras.

Há trinta anos, Portugal passou a fazer parte da CEE, hoje União Europeia (UE). Era outro Portugal então, e outra Europa então. Sem fazer a retrospectiva habitual, só uma coisa não mudou: quando as coisas corriam bem e quando as coisas correm mal, a UE não passa para nós de uma realidade distante que é bom não procurar conhecer, para melhor poder caricaturar.

Deu-se até um caso interessante. A "Europa" – entre aspas, como costuma pô-la Vasco Pulido Valente – substituiu "a choldra" como explicação de recurso para as nossas desventuras.

A choldra, como se sabe, é explicação com barbas. Há mais de cem anos, se o país não saía da cepa torta, a razão era simples: o país era uma cepa torta, e nunca poderia almejar ser outra coisa.

A "Europa" é mais modernaça, mas nos últimos anos ganhou uma espécie de omnipresença. É a favorita das oposições e dos governos, passados e futuros. Se a TAP tem de ser privatizada, é por causa da Europa. Se o Banif foi como foi, Europa. Se não pode ser de outra maneira, Europa.

Se perguntarmos onde está escrito em que tratado, em que diretiva, em que regulamento que as companhias aéreas dos países da UE não podem ser públicas, não há resposta. Nem poderia haver (e, já agora, não há nada contra dinheiro público numa TAP pública, desde que seja com um plano estratégico). Se se pergunta onde está a lei europeia que impediria o estado de ter integrado o Banif na Caixa Geral de Depósitos, encolhe-se os ombros: é a "Europa"...

Que os privatistas e neoliberais se esforcem por prolongar a caricatura da "Europa" castradora, compreende-se. Permite-lhes continuar a fazer aquilo que sempre desejaram fazer, e endossar a culpa a outros. Mas que a esquerda e os progressistas embarquem na mesma história já se compreende mal, a não ser que tenhamos medo de contrariar o ar do tempo.

Tal como na "choldra" havia muitos que repetiam a caricatura de que tudo era culpa nossa sem se aperceberam de que faziam parte da mesma suposta choldra que nós, na "Europa" é fácil exteriorizar a culpa para supostos outros sem admitir que nós fazemos parte dessa mesma Europa.

(Um exemplo, que não é colateral: a Arábia Saudita executou dezenas de pessoas nos últimos dias em processos-fantoche, ao mesmo tempo que preside ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. Mas Portugal e mais meia-dúzia de países da UE é também, no corrente ano, membro do mesmo conselho da ONU. Do que estamos à espera para, em vez de atirarmos as culpas para outros, liderarmos um esforço de coordenação para um voto de protesto contra a Arábia Saudita? Parece pouco, mas outros países da UE, como a Suécia, têm tomado a dianteira.)

Trinta anos após a "Europa" e mais de um século após a "choldra", já vai sendo tempo de nos deixarmos de caricaturas. Portugal é um país frágil e exposto ao mundo. Terá de aprender a reforçar-se e a entender o mundo exterior como ele é. A Europa, agora sem aspas, não é anjo nem demónio. O maniqueísmo do nosso debate europeu só nos enfraquece.

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