Vendendo ilusões: a União Europeia e o acordo de Parceria Transatlântica

Esperar que sejam os EUA a resolver os problemas da União Europeia é um erro. Importa não vender ilusões sobre o TTIP.

1. A retórica é grandiosa: “O maior acordo comercial bilateral da história” (David Cameron); “uma NATO económica” (Hillary Clinton); “uma alavanca política para promover valores europeus e universais em todo o mundo” (Cecilia Malmström). A Parceria Transatlântica para o Comércio e o Investimento (Transatlantic Trade and Investment Partnership TTIP), actualmente em fase de negociações entre a União Europeia e os EUA, poderá ser uma realidade em 2016. Não se trata de um acordo de comércio livre clássico, o qual tipicamente incide sobre a redução, ou eliminação, de direitos aduaneiros relativos a mercadorias e limites de importação. É muito mais amplo do que isso: abertura dos mercados dos dois lados do Atlântico, cooperação regulamentar e convergência de regras e padrões. Para a Comissão Europeia, é o acordo comercial mais ambicioso de sempre e uma oportunidade única para tornar os padrões do comércio internacional mais exigentes. Aponta cenários com múltiplas vantagens decorrentes da assinatura desse acordo: aumento do PIB no conjunto europeu; ganhos para as empresas na exportação e facilidades de investimento no mercado norte-americano; criação significativa de novos empregos e aumento do rendimento das famílias. Os argumentos não convencem os críticos, especialmente as ONG e diversos movimentos da sociedade civil (Plataforma “STOP TTIP!”). Para estes, as negociações estão a ser conduzidas sem uma adequada transparência e o TTIP vai ter essencialmente efeitos negativos: menos protecção ambiental; menos liberdade na Internet; menos soberania alimentar; mais desregulação financeira; e, pior ainda, vantagens ilegítimas dos investidores internacionais, sobretudo empresas multinacionais, sobre os Estados e cidadãos em geral.

2. Nesta altura, e desconhecendo-se os seus termos exactos, é impossível avaliar de forma equilibrada e com rigor, os possíveis efeitos do TTIP o mais que se pode falar é em cenários, cujos ganhos ou perdas antecipadas variam com os pressupostos dos estudos. Em qualquer caso, a apresentação como um acordo “win-win”, onde todos ganham, é falaciosa. É fácil de demonstrar isso. Há, pelo menos, três níveis de análise do seu impacto: o nível do conjunto da União Europeia; o nível dos Estados-Membros; e o nível sectorial. (A mesma análise vale para os EUA.) O facto de o acordo poder ser bom para o conjunto europeu (nesta altura, apenas uma hipótese), não significa que seja bom para todos os Estados-Membros, considerados individualmente. Mesmo que uma economia ganhe, no seu todo, não significa também que não haja perdedores de vulto dentro desta. Um exemplo. No caso português, normalmente apresentado com uma das economias que mais serão beneficiadas pelo acordo, os impactos sectoriais poderão variar muito. Se o sector do calçado se perspectiva como importante ganhador da abertura do mercado dos EUA, já o sector do tomate poderá ser fortemente perdedor, pela concorrência dos produtores norte-americanos. Os exemplos poderiam multiplicar-se, bem como a variação do impacto, ao nível dos empregos nos diferentes sectores de actividade económica, ou ao nível dos consumidores de diferentes produtos e serviços. Existem, assim, bons argumentos para ser particularmente cauteloso quanto aos possíveis ganhos na economia e no emprego. Para além disso, extremamente contestada, com maior ou menor conhecimento de causa, é a inclusão de um mecanismo de solução de litígios entre Estados e investidores (Investor-State Dispute Settlement). Para os críticos, este é um dos aspectos que mais denota o desequilíbrio do TTIP a favor dos interesses das empresas multinacionais, em detrimento dos Estados e dos cidadãos. Face à contestação e pressões da opinião pública, a Comissão propôs, em finais de 2015, a sua substituição por um sistema jurisdicional específico para os investidores (Investment Court System). No próximo mês de Fevereiro, na nova ronda negocial — a décima segunda, a efectuar em Bruxelas —, será possível ver melhor os contornos deste sistema jurisdicional e talvez ter até uma versão preliminar do acordo de Parceria Transatlântica.

3. O TTIP é um acordo económico e comercial, mas parte dos argumentos usados a favor deste são geopolíticos e de valores democráticos. Têm estes argumentos substância? Vale a pena olhar melhor para esta faceta da questão, sob o prisma da União Europeia e dos EUA. Uma das ideias mais difundidas é que o TTIP seria uma forma de preservar a preponderância económica e política do Ocidente — leia-se, EUA e União Europeia — e dos seus valores democráticos no mundo do século XXI, face à ascensão da China (e Ásia-Pacífico) e do seu modelo de capitalismo autoritário. O argumento é sedutor mas não resiste a um escrutínio mais minucioso. A União Europeia é apenas uma peça (subordinada) da estratégia global dos EUA, não um parceiro razoavelmente igualitário como sugere o uso do termo Ocidente. Esse quadro mental está subjacente à comparação do TTIP a uma “NATO económica”, como fez Hillary Clinton. Nem defensores, nem críticos da NATO, duvidam que esta aliança político-militar é um instrumento da supremacia norte-americana. Os europeus — também por sua própria culpa, devido às crónicas divisões políticas e ao desinvestimento em segurança e defesa —, não têm autonomia real. Quanto à defesa de valores democráticos contra o capitalismo autoritário, há fundadas razões para ser céptico sobre a substância deste argumento. Já foi usado, nos anos 1990, pelos norte-americanos, para justificar a adesão da China à Organização Mundial do Comércio (OMC). Provavelmente, na altura, viam-se como ganhadores económicos e comerciais dessa adesão, o que não aconteceu. Não consta que a China seja hoje mais democracia liberal do que na época. Nem a falta de valores democráticos, ou o desrespeito dos direitos humanos, impediu as grandes multinacionais norte-americanas e europeias de se estabelecerem na China e de fazerem negócios vultuosos, no seu próprio interesse. Um exemplo irónico é até o facto de a tecnologia para censura na Internet — a mais sofisticada hoje em uso —, ter sido fornecida pelas multinacionais da área, com origem nos EUA.

4. É fácil perceber que a estratégia dos EUA está já centrar-se na Ásia-Pacífico onde antecipam (correctamente, na sua perspectiva), os maiores desafios à sua hegemonia global. A estratégia é uma espécie de containment (contenção) da China, adaptada ao contexto da actual globalização. A sua reorganização militar, com desinvestimento na Europa e Atlântico e reforço da presença na Ásia-Pacífico, aponta nitidamente nesse sentido. O encerramento da base das Lages, nos Açores, enquadra-se nessa estratégia, ao que tudo indica irreversível. As negociações de uma Parceria Trans-Pacífico (Trans-Pacific Partnership TPP), concluídas em Outubro de 2015, são a sua faceta económica e comercial. Na perspectiva norte-americana, se há razões geopolíticas de fundo para um acordo de comércio, onde estas existem inequivocamente é na Parceria Trans-Pacífico. A Associação das Nações do Sudeste Asiático (Association of Southeast Asian Nations ASEAN) é outro foco desse interesse estratégico. (Ver o “Special Report: Asia-Pacific Rebalance” do US Department of Defense). Importa também ter em mente que os EUA têm cada vez menos interesse na Europa, até por motivos culturais e sociológicos. A componente latino-americana e asiática da sua população é cada vez mais significativa. Provavelmente, será maioritária durante as próximas décadas. Imaginar o Atlântico como centro do mundo — e os EUA como país anglo-saxónico —, é passado. No melhor dos cenários, o TTIP poderá atenuar, durante algum tempo, os efeitos deslocação de poder em curso para a Asia-Pacífico e trazer algum bem-estar económico. Em qualquer caso, nunca será um efeito generalizado de bem-estar, mas, sobretudo, de ganhos sectoriais / empresariais, pelas razões que apontámos. Haverá ganhadores e perdedores, na economia e tecido social, resta saber, exactamente, em que termos. No pior cenário, acentuará os problemas já existentes ligados a uma globalização adversa ao modelo social europeu, sem vantagens relevantes geopolíticas, ou seja, na segurança europeia e reequilíbrio Atlântico. Esperar que sejam os EUA a resolver os problemas da União Europeia é um erro. Importa não vender ilusões sobre o TTIP.

Investigador

Sugerir correcção
Ler 3 comentários