A beleza convulsiva que há em ser lúcido

Um livro modelar pela forma como exprime o mundo sem nunca deixar esmorecer a sua qualidade formal.

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O olhar atento ao real político e social e o cuidado extremo na composição e na expressão definem a poesia abrasiva de Paulo da Costa Domingos Rui Baião

O mínimo que se pode dizer é que nunca foi entusiasmante a relação da poesia portuguesa com o que se poderia chamar um enfoque social, ou político. Na melhor das hipóteses, os produtos da opção por esses temas revelaram-se frouxas tentativas, ou esforçados trabalhos de frustrante laboratório. Com as honrosas excepções da praxe, a nossa poesia tem apresentado pouco nesse particular. Um dos muito escassos autores nos quais essa atenção não descaiu num vulgar panfletarismo (partidário ou menos definido), nem na mais baça sensaboria estética, é Paulo da Costa Domingos. O seu caso é especialmente digno de nota porque os dois aspectos em apreço — o olhar atento ao real político e social, e o cuidado extremo na composição e na expressão — estão claramente patentes na poesia que publica há mais de 40 anos. Nesse aspecto, como certamente noutros pontos, um dos nomes que mais urgentemente se devem lembrar, ao ler e pensar a sua escrita, é o de Carlos de Oliveira. Em ambos os casos, são nucleares a importância do mundo e dos seus intervenientes, a acção do homem, e o reflexo político dessa prática; a depuração estilística é uma causa, mas também um efeito, uma forma que é um teor — um modo de ler o mundo. Ou de transformar o mundo e mudar a vida, como defendeu Breton, unindo as propostas de Marx e de Rimbaud. Já em A Morte dos Outros (Companhia das Ilhas, 2014), Umbral da insónia cerzia passos do romance Casa na Duna e do poema Casa, ambos de Carlos de Oliveira. E os versos inaugurais da secção Turno da Noite, de Cal, onde se lê “A catástrofe serena dos que iam/ pelo ausente do povoamento/ e da paisagem, que saíra à procura/ de uma voz uma entoação” (p. 47), permitem-nos chamar à colação Finisterra: Paisagem e Povoamento e Paisagem. Nem a troca da ordem dos termos denega a proximidade entres dois entendimentos — em certos pontos tão próximos — da escrita; nem um passo daquele romance de Oliveira como “Sem precisar de pompa (de articulação), a voz torna-se um sussurro natural”.

A discrição que tem sido timbre da produção poética de Paulo da Costa Domingos é apenas um dos sinais da firme elegância, da intransigente recusa de compromisso estético e ético, que marcam este percurso. A vertente pela qual mais tem sido possível conhecê-lo é, possivelmente, a de editor da marcante Frenesi (a par de um notável labor alfarrabístico de conhecedor profundo do livro em todas as suas cambiantes). A acção contracultural da chancela de Paulo da Costa Domingos tem na proximidade com os princípios e as práticas de Vitor Silva Tavares uma das suas marcas mais profundas. Quer isto dizer que os vasos altamente comunicantes entre estética e ética perpassam dos livros que tem vindo a editar para os que escreveu, e destes para aqueles. E é claro que a presença de Vitor Silva Tavares (seria ínvio falar de “legado”) é forte e esclarecida, sem complacências. A prática de Paulo da Costa Domingos não precisa, sequer, de se reclamar de uma identificação tornada desnecessária pelas próprias evidências. O prefácio que Vitor Silva Tavares redigiu para Cal — último texto do editor maior, este ano desaparecido — é um exemplo dessa ligação a um tempo próxima e isenta de mesuras. Para tanto, basta atentar no título do seu testemunho escrito: Merda! P.C.D. é lúcido. Muito mais do que a memória de Álvaro de Campos, interessa a força decisiva da exclamação — e o sentido do que ela assevera. Daí que Vitor Silva Tavares escrevesse, de forma tão certeira, sobre um “discurso, atroz mesmo quando irrisório” (p. 9), e isolasse a importância da cal que intitula o livro, elemento que “só pode funcionar como abrasivo” (id.). Porque, como é óbvio para quem leia esta poesia, ela está nitidamente distante quer de um descritivismo seco e “etnográfico”, quer de uma lamentação gorada. Não existe qualquer paternalismo, nem benquerença indesejável, uma vez que a escrita preserva e vai sempre agudizando o modo abrasivo que Vitor Silva Tavares nela tinha detectado — “as secretárias vão e vêm/ envoltas em talco e lavanda/ na sua inocência de putas// lorpas” (p. 29). Ou como põe a questão um outro poema, ainda de forma mais decisiva e brutal — “¿que querem de mim/ o jardim da desgraça,/ os seres da desolação?/(…)/ … ¿Que seja amável¡¿” (p. 82) Todos são culpados, porque não há quem não tenha tragado, até ao último sorvo, a pastilha letal do livre-arbítrio. Cada qual é responsável; é-o, porém, num mundo em que a acção de certa máquina (ou aglomerado delas) transcende a esfera do indivíduo emancipado, puxando fios tendencialmente invisíveis e gerando sinistros bonecos articulados, cujos gestos levam um obscuro colectivo em direcções que teimam em parecer um abismo — “e nós, no breu, daqui só sairemos a rastejar: o fósforo// ardeu” (p. 43). Porque o poema “não é um número/ de variedades” (p. 26), o seu papel não é o de entreter, promover o escapismo, nem apontar o oásis da mudança, mas demonstrar e gerar a instigação.

Cal, é-nos anunciado em subtítulo, é a “segunda parte de Nas Alturas” (Frenesi, 2006). Este constituía, por sua vez, a terceira parte de um tríptico que abre com Gogh, Uma Orelha sem Mestre (Frenesi, versão de 2004) e prossegue em Asfalto (Frenesi, versão de 2005). Gogh configura um regresso à urbe, um retorno que os versos lançam sobre mar — “Flutuante finalmente flutuante, passo centrípeto/ à margem da minha cidade” —; Asfalto percorre paragens em que se ergue o emblema torpe da miséria lisboeta, como Regueirão dos Anjos, o terreiro da Igreja dos Anjos, ou o Intendente. As quais se podiam já interpretar como emanações de um mal ressurgente em Cal, cuja expressão mais aguda será porventura a que dá a conhecer a “pequena morte// de ainda não poder morrer” (p. 67). Forma simultaneamente parcimoniosa e empenhada de dizer um estado revoltante de coisas. Mas não é só no respeitante a cenários — que não o são, na verdade, por muito mais fundadores — que os três livros encontram um prumo de sólida união entre si. O narrador de todos eles vai evoluindo desde o marinheiro que sulca o Tejo crivado de memórias que vai confrontar com a nova realidade que o cerca (Gogh) até ser uma voz inconveniente de ouvir no desejável (por uns quantos) segredo da miséria (Asfalto). Em Nas Alturas, o narrador recolhe ao interior do seu comparativo conforto, capaz de “assomar à varanda”, ou de se ocultar por trás de duas castas de “vidros”: de uma janela e de um televisor. Um encadeamento de sentidos que atinge o seu culminar numa secção nuclear de Cal, Turno da Noite, onde não são apenas certos versos que se retomam — alguns dos quais (apenas com uma subtilíssima alteração) de importância fulcral para a interpretação do próprio título da obra: “a vida é um trilho de cal até uma vala” (p. 50) —, mas é a própria noção deste narrador que se põe em causa. Porque, dado o transcurso dessa entidade dotada de flutuante poder e de uma esfera de influência que se vai alterando, ele passa a sabotar um entendimento estanque da dinâmica de classe. Não se trata aqui, contudo, de uma qualquer espécie de darwinismo social, mas desse “dinamitar tudo à passagem” (p. 50), paráfrase de Fernando Assis Pacheco que ilustra um entendimento sobretudo provisório, e profundamente revogável, dos institutos e das formas da sociedade como tecido organizado. Uma posição próxima do anarquismo, que tanto ajuda a caracteriza este autor, aproximável da acção de um Guy Debord (que, de resto, editou).

Paulo da Costa Domingos lembra-nos como a poesia é um facto do ritmo e uma circunstância verbal cujas componentes lançam buscas por uma harmonia entre a expressão e o alcance dos sentidos. O encavalgamento, por exemplo, gera um incremento que é não só rítmico e gráfico, mas instiga caminhos de significado que não se esgotam num veio unívoco — “enrolamo-nos na mortalha seca/ do cigarro, num ensaio de salto// em altura; porque altos são/ os desígnios e a temperatura” (p. 33). Não é, porém, apenas a ambiguidade, como valor retórico, que se busca, mas uma gestação mais activa de níveis distintos de significado. Constantes, ao longo de Cal, são as sagazes operações da prosódia, articuladas como estão com nexos firmemente gerados entre vocábulos e sonoridades — “e nós, como cegos, julgamos ler/ nas polpas dos dedos a tragédia/ prometida: o êxodo da beleza/ para os canhenhos da censura// moral” (p. 25). O enlevo da metáfora, contra cuja hipnose o prefácio de Vitor Silva Tavares precavia, é evitável, sim, porque nunca cumpre a função de cortina de fumo, mas é, antes, a própria forja do verso, através do qual ardem os seus lumes. Esse labor da palavra é sempre um sinal de alerta. Pela capacidade de exortar de forma verbalmente estimulante, a palavra interpela-nos e abana o marasmo que os versos de Cal esconjuram — “Nossa carne decompõe-se/ numa florália daninha, parasita,/ que as lindas raparigas fumam/ às portas giratórias da mente,// à espera de sirenes da fábrica…/ ou da polícia, reflectidas na calçada” (p. 21).

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