Sobre a crise dos jornais (1)

Os jornalistas têm um grande masoquismo, para não lhe chamar outra coisa, ao dar estatuto noticioso às “redes sociais”, sem a mediação e edição jornalística.

Uma das vantagens de viver numa aldeia é ter uma visão muito clara de que comunicação social cá chega, porque chega, quem a lê e quem a não lê. Aqui e neste artigo, comunicação social são os jornais, deixo de lado a televisão (cujo consumo também pode ser percebido em público nos cafés) e a rádio, que é muito mais privada e quase só automobilística. Voltemos aos jornais, para pensar um pouco a crise que atravessam.

A primeira constatação é que há jornais que não participam nessa crise e, em grande parte, lhe escapam. Na minha aldeia só chega o Correio da Manhã, trazido para os cafés, e lido avidamente pelos mais velhos, chegando a haver uma fila de espera para a sua leitura. E basta observar para perceber que a parte que é lida com mais tempo e dedicação é a parte noticiosa, ficando os suplementos mais capitosos para uma segunda linha de leitura, em conjunto com a Nova Gente, e com um público mais feminino. Verdade seja que, numa suplementar afirmação do “não há alternativa”, não existe nenhum posto de venda de jornais a não ser a muitos quilómetros, pelo que não há mesmo alternativa a não ser com muita dedicação à palavra escrita nos jornais. Seria interessante durante algum tempo observar os hábitos de leitura colectiva, onde o jornal passa de mão em mão, assente no interesse de quem o vai buscar, para outra imprensa, como, por exemplo, o PÚBLICO ou o i. Um dia farei essa experiência para tirar cá umas teimas.

Por isso, e como se vê nas estatísticas de venda em banca, a mais genuína ainda hoje para aferir a crise da imprensa, nem todos os jornais estão em queda ou com vendas muito pequenas estagnadas. Em Portugal, voltamos ao mesmo, isso significa olhar para o Correio da Manhã, um jornal que sendo também um tablóide, está longe de ser apenas um tablóide. A atitude altaneira que muitas vezes se toma com o Correio da Manhã, muito comum entre os jornalistas que não são do Correio da Manhã, e de uma parte da esquerda e da direita snob que acha que é inglesa, esquece que no meio de muita coisa inominável que enche as paginas do jornal, há aquela rara coisa que é suposto ser o cerne do jornalismo, ou seja, notícias. Há aliás muitas vezes mais notícias no Correio da Manhã do que nos outros jornais todos, o que se passa é que estão tão misturadas em títulos populistas, muitas vezes igualando o que é relevante com o trivial puxado para o escândalo, em que o estilo sobrepõe-se ao conteúdo.

O que é que vende o jornal, o estilo, populista e escandaloso típico de um tablóide, ou o conteúdo noticioso que muitas vezes está soterrado na agressividade das campanhas ad hominem? A resposta mais fácil é responder que é o estilo, que é a “face” do jornal, e um bom exemplo disso é a campanha contra Sócrates. Mas é a resposta mais fácil, porque havendo uma clara campanha pessoal, ela suporta-se quase sempre em notícias sólidas e duras, que sobrevivem para além dos títulos e do tratamento gráfico tablóide. Sócrates não gosta nem os seus amigos, mas há muito de interesse público naquilo que são os factos sobre a vida económica de quem foi um muito poderoso primeiro-ministro e que vivia, digamos, por conta. Ah! dizem os críticos, mas assenta em fugas de informação! É verdade, mas a crítica às fugas de informação de um jornal para outro é muitas vezes mais inveja de não as ter, ou incapacidade ou coragem de as usar em termos jornalísticos.

O que o Correio da Manhã nos ensina, no meio da ganga toda, é que nos jornais é preciso ter uma cultura das notícias, uma cultura que, para além do contexto, do enquadramento, da análise, da opinião dos jornalistas, aponta para uma direcção e um trabalho profissional de procura de informação, sem o qual os jornais entram em crise.

A principal razão porque se lêem jornais é porque têm notícias, porque os seus jornalistas as procuram agressivamente e são capazes de passar dos “recados” semanais para a primeira página, do “cultivo das fontes”, do jornalismo de telefonema, da agenda igual para todos, do jornalismo de rebanho, da mistura crescente entre opinião e jornalismo, que normalmente é mais opinião do que jornalismo, para a procura de notícias, principalmente aquelas que os vários poderes não querem que sejam dadas e que são quase todas. É tanta a coisa que não sabemos, sobre o Novo Banco e o Banif, sobre a cornucópia de dinheiro que agora jorra sobre os clubes de futebol, sobre o que a troika exigiu ao governo Passos-Portas ou o que este sugeriu à troika para fazer, sobre quem é o dono da TAP, sobre como é que se passam as “negociações” em Bruxelas, quem manda, quem é mandado, sobre quem é “dono” dos jornais e televisões, sobre os poderes paralelos de grandes escritórios de advogados ou de consultoras financeiras, sobre qual é a actual situação dos aparelhos partidários no PSD e no PS, quem arranjou as assinaturas de Marcelo, ou se o Tribunal Constitucional verificou as assinaturas de todas as candidaturas que lhe foram apresentadas, algumas das quais parecem ter conseguido sem “aparelho” o milagre de obter 7500 assinaturas validadas, mil e uma coisas sobre as quais se sabe muito pouco ou em que circulam mentiras e falsidades que ninguém quer investigar. A sequela normal desta consideração é que cada vez mais o chamado “jornalismo de investigação” está no centro do jornalismo que ainda sobrevive em papel. Voltaremos aqui mais adiante.

O segundo aspecto da crise dos jornais em papel tem a ver com o debate sobre os hábitos de leitura e procura de notícias, e a sua diversificação entre o papel e o online, assim como as diferenciações geracionais entre os mais novos que usam a Internet para se informarem e os mais velhos que ainda mantêm o hábito de comprar jornais em banca. Na verdade, penso que é seguro afirmar que há uma geração mais nova que prefere procurar as notícias na Internet, não sendo líquido que tudo de onde lhes vem informação seja jornalismo. Aqui defrontamo-nos com o problema das literacias no consumo da Internet: quem tem melhores literacias a montante, aprendidas na escola e na família, aproveita melhor as procuras, sabe distinguir a informação qualitativa e editada que encontra na rede do lixo que a enche por todo o lado, sabe distinguir notícias das insinuações, boatos e mentiras que pululam nos comentários e nas chamadas “redes sociais”.

Verdade seja, que muitos jornalistas ajudam a esta desqualificação da sua própria profissão ao permitir os comentários sem moderação, remetidos por pudor para o Facebook para não sujar as páginas mais dignas do jornal, permitindo, como já o disse, uma fossa imunda nos alicerces do jornalismo de “referência”, por razões puramente comerciais. Os jornalistas têm também um grande masoquismo, para não lhe chamar outra coisa, ao dar estatuto noticioso às “redes sociais”, sem a mediação e edição jornalística, e àquilo que se chama indevidamente “jornalismo do cidadão” cuja principal característica é não ser jornalismo. Isto não significa que não haja notícias nas “redes sociais” ou nos blogues, o que se passa é que para passarem a ser notícias têm que ser sujeitas ao trabalho de edição e contexto de alguém que é suposto ter uma carteira profissional para exercer jornalismo. Esta erosão da profissão feita pelos próprios profissionais é uma das razões por que a crise do jornalismo acompanha a crise geral das mediações, um dos maiores problemas de uma outra crise mais vasta, que é a da democracia representativa e das suas instituições.

(Continua.)

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