De olhos postos no Brasil, esperançadamente

Dado que o Português, e o modo como se escreve em Portugal, parece ter sido entregue pelos nossos políticos ao cuidado do Brasil, tem todo o interesse perceber os pontos de vista dos principais responsáveis por este Relatório, ainda no "segredo dos deuses".

A História repete-se.

Em 1911 e em 1945, como se sabe, Portugal ficou a "ortografar" sozinho.

Mais recentemente, a quatro dias do termo de 2012, Dilma Rousseff protelou o "problema AO90" para Dezembro de 2015, decretando que a obrigatoriedade do autodenominado "Acordo Ortográfico" no Brasil ficava adiada para 1 de Janeiro de 2016.

Cremos que, como se diz em futebolês, a "Presidenta" (sic) do Brasil voltará a chutar para canto (ou "escanteio"), com um novo decreto.

Nesse caso, Portugal ficará com duas saídas: ou (1) a via autofágica de deixar desagregar um sistema linguístico estável através da corrupção da grafia imposta ao sistema de ensino e à administração pública por uma mera Resolução do Conselho de Ministros (a RCM n.º 8/2011) assinada por José Sócrates, ou (2) a recuperação da sanidade mental colectiva, conferindo o justo valor patrimonial à ortografia consuetudinária do Português-padrão, a única com legitimidade natural e legal, aquela de que a sociedade civil portuguesa nunca abdicou globalmente.

A 11 de Dezembro último, ficou encerrada a contagem de apoios "em linha" a uma proposta legislativa para "Retirada do Brasil do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990" no Senado Federal, alegadamente «Sem apoio suficiente». Estranhámos muitíssimo os 325 supostos apoios de cibernautas, contabilizados após a intensa mobilização levada a cabo na rede social Facebook, através do grupo "Em aCção contra o Acordo Ortográfico" (com 64 mil membros), contando com muitos cidadãos luso-brasileiros muito motivados e a participação de várias figuras públicas brasileiras. (Alô Brasil, duvidem da probidade deste "contador"...!) Em todo o caso, seriam necessários 20 mil apoios validados nos quatro meses em que a proposta esteve pendente de subscrição na Internet, e sempre seria difícil haver tamanha participação cívica para tal efeito numa população com tão altos índices de analfabetismo funcional.

Entretanto, no âmbito deste assunto, tinha havido outros factos no Senado. Condensando a informação que é pública, importa dar conta do sucedido na 64ª reunião, de 10 de Novembro passado, da Comissão de Educação, Cultura e Esporte, agora presidida pelo Senador Romário (sim, esse mesmo, o "baixinho"!), e interpretar as respectivas notas taquigráficas online.

Lidas as actas e transcrições, infere-se que o Senador Cristovam [lê-se como "Cristóvão"] Buarque retirou, por iniciativa própria, para dar prioridade a outra coisa, um requerimento com vista ao agendamento de uma audiência pública para apresentar o há muito aguardado "Relatório do Grupo de Trabalho Técnico [GTT] sobre o texto do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa". Propunha aí a presença de seis convidados: os três representantes/coordenadores deste GTT (Carlos André Pereira Nunes, Pasquale Cipro Neto e Ernani [lê-se como "Hernâni"] Pimentel) e outras três pessoas – Dad Squarisi, Evanildo Bechara (da Academia Brasileira de Letras [ABL], co-responsável pelo AO90) e Alexandre Eggers Garcia (da TV Globo!).

Dado que o Português, e o modo como se escreve em Portugal, parece ter sido entregue pelos nossos políticos ao cuidado do Brasil, tem todo o interesse perceber – engolindo em seco, adverte-se! – os pontos de vista dos principais responsáveis por este Relatório, ainda no "segredo dos deuses". Para isso, bastará atentar nestes três vídeos (um deles em três partes), disponíveis no YouTube, começando pelo mais animador e terminando no mais pesadélico:

(1) Carlos André Pereira Nunes (do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil) - vídeo "Aula de Português Jurídico – Grafia e significado das palavras: sessão, cessão e seção" (sic)

(2) Pasquale Cipro Neto + Ernani Pimentel – vídeo tripartido "Morte do Acordo Ortográfico no Brasil! :) - Audiência à porta fechada na Assembleia da República (27/11/2013)"

(3) vídeo "TV Senado: a "SIMPLIFICAÇÃO" da Língua Portuguesa segundo Ernani Pimentel e Cristovam Buarque!"

Em síntese, refira-se que todos os coordenadores deste GTT se posicionam contra as alterações propostas por esse tratado internacional mal designado por "Acordo Ortográfico", cada um dos três por diferentes razões. Facilmente terão concordado em discordar de um "trabalho" que, como o próprio Evanildo Bechara da ABL escreveu num manifesto, "não tem condições para servir de base a uma proposta normativa, contendo imprecisões, erros e ambigüidades." (sic)

Perguntar-se-á o leitor por que razão o importante Relatório do GTT – debatida que foi, durante dois anos, esta auto-proclamada (mas auto-condenada) tentativa de massificação ortográfica transatlântica – não irá merecer a visibilidade de uma audiência pública no Senado. O que levou o Senador a retirar o seu próprio requerimento? Eis a boa notícia para quem deseja uma pesada lápide sobre este atentado cultural: o requerimento em causa foi substituído por outro, solicitando envio urgente do Relatório à Presidência da República, ao Ministério das Relações Exteriores brasileiro e à ABL.

Na referida reunião, Cristovam Buarque vê aprovado estoutro requerimento "extrapauta" (fora da ordem de trabalhos). Quando se oferece para ler a correspondente justificação, a Senadora Lídice da Mata, presidindo à reunião, dispensa-o dessa leitura e acrescenta: "V. Ex.ª inclusive, a Senadora Ana Amélia e eu também tivemos a oportunidade de debater esse assunto aqui (...) e tivemos uma audiência com a Casa Civil [da Presidência da República] à época [em 2012]. Se não me engano, é na mesma direção." (sic) O mesmo é dizer que a história se repete, assim reza a transcrição da sessão que com prazer aqui se reproduz. Infelizmente, o texto da tal porção justificativa do documento, cuja menção era manifestamente desnecessária, não ficou acessível no portal da Comissão.

Mais adiante na mesma reunião, ao referir o requerimento retirado, Cristovam Buarque assinala: "acho que ele se choca com o meu requerimento anterior [o que acabara de ser aprovado], que eu considero mais importante e urgente." Compreende-se a urgência apenas se o Relatório tiver o propósito de "abortar" novamente a entrada em vigor do AO90. Só nesse caso, com efeito, a remessa à Presidente não deveria aguardar a realização da tal audiência. Somente nesse pressuposto se percebe que os Relatores não quisessem que o Relatório chegasse ao Palácio do Planalto agora em Dezembro, no mês anterior à "vigência plena" determinada pelo Decreto presidencial de 27/12/2012, mas mais cedo.

Podemos pôr o champanhe no frio? Assim sim, feliz 2016. Enquanto a "bomba" circula nos corredores do Planalto e do Itamaraty, antes de deflagrar no clube dos "lusófonos" que tanto vêm lucrando com este crime de lesa-Pátrias, ficamos de olhos postos no Brasil, neste País circunstancialmente refém de quem nos crê a alma cotada em petrodólares, nesta impossível rota anti-histórica e contra-evolutiva traçada na demanda por nenhures, degredada, náufraga, desnorteada... pelo Cruzeiro do Sul. Raptaram-nos esta velha Europa cultural, que definha e agoniza a bordo de um navio petroleiro da Europa política; pagamos o resgate – vão-se todos os anéis, fiquem todos os dedos.

Médica, escritora e activista cívica

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