"O esforço feito na I Guerra Mundial foi superior ao que o país estava disposto a aceitar"

Afonso Costa foi o principal responsável pelo envio do Exército português para a frente europeia em 1916. Filipe Ribeiro de Meneses, autor de A Grande Guerra de Afonso Costa, explica que essa estratégia levou o país à exaustão – e a grande figura da República Velha à morte política.

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O Governo republicano alimentou a ilusão de que a participação na guerra mobilizaria o país em torno de uma causa comum — mas não seria bem assim...

Filipe Ribeiro de Meneses regressa à História de Portugal na I Guerra Mundial recorrendo a Afonso Costa como principal fio condutor dos acontecimentos. Para o investigador da Universidade de Maynooth, na Irlanda, foi ele o grande estratega e defensor da participação de tropas portuguesas na frente ocidental, ousadia que gerou a resistência de um país que não queria a guerra e lhe criou inimigos no seio do Partido Democrático.

O que é que esta investigação mudou na ideia que foi construindo sobre Afonso Costa?
Este livro vem alterar algumas ideias que eu tinha. Por exemplo, vem reforçar a noção de que Afonso Costa se empenha e muito – não necessariamente na entrada de Portugal na guerra, que isso já sabíamos, mas na participação na Frente Ocidental. Ele empenha-se a fundo em conseguir que, depois de Portugal entrar, os Aliados aceitem a sua participação em França. Parte para Londres para negociar essa questão e a caminho, em conversa com o João Chagas, diz: ‘Eu não saio de Londres até conseguir o que quero’. De facto ele fica lá bastante tempo e é uma negociação, ao que parece – não temos todos os detalhes, todos os documentos , dura; há quase até uma chantagem feita pela equipa portuguesa, que se faz valer de todas as armas, incluindo os navios que tinha apresado à Alemanha. É um jogo de póquer em que as apostas são muito elevadas. E sobra a sensação de que grande parte do país fica surpreendida por essa decisão de participar tão activamente na guerra, incluindo o próprio Partido Democrático.

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Os esforços da República para garantir o estatuto de beligerante a Portugal já vêm de trás. O que está a dizer é que até Março de 1916 se equacionava uma participação na guerra que não incluía o envio de tropas para a Frente Ocidental?
Essa é a grande diferença. É possível estar em guerra e não enviar tropas para França. Mas com Afonso Costa no poder isso é rigorosamente impossível. Outra possível novidade, chamemos-lhe assim, é o grau de contestação a Afonso Costa dentro do próprio partido. Eu, pelo menos, tinha a ideia de que o partido estava muito unido. Há só uma ou duas ocasiões que conhecemos de longa data, bem recenseadas até pelo Jaime Cortesão nas memórias dele [que contrariam essa tese]. Mas quanto mais investigamos a vida do Partido Democrático, mais nos apercebemos de que há muitas correntes dentro do partido e que há uma contestação à liderança de Afonso Costa que provém desta decisão de ter uma acção intensa na guerra. Mais uma vez, [os contestatários] eram intervencionistas, queriam que Portugal participasse no conflito, mas a escala do envolvimento assusta-os. E ficam a pensar que para o país, ou até para o partido, não era o melhor caminho a seguir.

Essa contestação intensifica-se na segunda metade de 1917, meses antes do golpe de Sidónio Pais?
Mesmo quando lemos as minutas dos conselhos de ministros da grande crise dos navios que precede a entrada de Portugal na guerra percebemos que há ali um grande receio. Não há uma vontade unanime de seguir o caminho traçado por Costa. E vemos que imediatamente depois da declaração de guerra o próprio Bernardino Machado, Presidente da República, e outras figuras em contacto com diplomatas estrangeiros deixam passar a ideia de que Portugal iria ter uma guerra relativamente calma, tranquila. E a opinião unanime desses diplomatas, sejam britânicos ou franceses, é que o pragmatismo de Afonso Costa iria impedir grandes aventuras. Mas, afinal de contas, eles, incluindo alguns colaboradores próximos de Afonso Costa, estão enganados. Ele vai empenhar-se a fundo pela maior intervenção possível.

A participação era vista como tendo mais utilidade moral do que material para o país. Como é que a guerra daria lugar a um “novo Portugal”, que era o desejo supremo de Afonso Costa?
A ajuda moral que viria de fora daria a aceitação do regime republicano no estrangeiro. Isso iria facilitar a vida do regime. Mas, sobretudo, acho que o Afonso Costa tinha a percepção da pouca penetração da República na vida de grande parte dos portugueses. Setenta por cento dos portugueses eram analfabetos, não podiam participar na vida política porque o Partido Democrático não lhes dá o voto, a Igreja Católica continua a ser uma força que faz uma oposição declarada, há alguma decepção em torno da transformação efectuada até 1916 pela República. O que a guerra permitirá é que patriotismo e a República passem a ser duas faces da mesma moeda. Que toda a nação se empenhe num esforço comum, algo que nunca se tinha visto em Portugal. Que fosse a República a liderar esse processo seria uma forma de acelerar a transformação e a modernização do país que os republicanos desejavam efectuar, não tendo contudo até então reunido meios práticos para o conseguir. A guerra serviria para acelerar então a transformação material do país, mas também as mentalidades da população. 

É paradoxal que Afonso Costa e os Democráticos não tenham considerado alterar a Lei Eleitoral, que excluía a maioria esmagadora dos portugueses da vida política, e que não tenham recorrido à propaganda para garantir a mobilização, como aponta no seu livro. 
O alargamento do sufrágio era visto ao mesmo tempo como desejável mas algo perigoso para o regime. Qualquer que fosse o cálculo sobre os efeitos da participação na guerra no país, não se podiam sobrepor à necessidade de o Partido Democrático continuar a controlar a política. A concessão ou o alargamento do sufrágio viria pôr em risco esse controlo, e por isso há várias correntes dentro do partido que se digladiam entre elas e uma acaba por vencer, que é a que defendia a não concessão do voto universal. A questão da propaganda é ainda mais estranha. Há propaganda, mas dirige-se aos convencidos, aos que aceitam a participação de Portugal na guerra. É uma propaganda virada para uma audiência republicana. Os republicanos não sabem dialogar com o resto do país, sobretudo com a grande massa da população rural. Não têm um discurso virado para essa população, não se sentem bem-vindos entre essa população e não sabem como começar o diálogo, quanto mais como convencê-la. Há uma contradição entre o desejo de participar na guerra para que ela tivesse efeitos sobre Portugal e as políticas adoptadas para concretizar esse desejo.

Isso justifica a hostilidade contra a guerra que se acentua ao longo de 1917, e que se verifica num altíssimo número de deserções?
Sim. Conforme as condições se vão agravando, maior é a relutância em participar em acções de propaganda em favor da guerra. Há o medo do risco, de fazer má figura. As dificuldades da guerra vão concentrando cada vez mais as atenções da União Sagrada [governo de coligação entre Democráticos e Evolucionistas que durou entre Março de 1916 e Abril de 1917].

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Afonso Costa de visita ao Corpo Expedicionário português estacionado na Flandres

Escreve que a proporção de forças envolvidas ou de baixas registadas foi relativamente reduzida em comparação com outros países da mesma dimensão. Mas enviar duas divisões para a Flandres e uns 40 mil homens para África foi uma façanha para um país pobre e devastado pela instabilidade política e social. Era possível fazer mais e melhor?
Não era possível. Várias vezes Norton de Matos [ministro da Guerra) e Afonso Costa mencionam a hipótese de uma contribuição ainda maior de Portugal [para o esforço de guerra]. Havia vontade de enviar o maior número possível de homens, e afinal o maior número possível foi aquele. O que já na altura muita gente pensava e eu, francamente, estou de acordo, é que se foi até longe de mais. Era possível reunir tantos homens e mandá-los para França ou Moçambique, mas eles não queriam ir para a guerra. O esforço feito foi superior ao que o país estava disposto a aceitar. Por isso, o número de baixas é reduzido e o número de homens enviado é, em comparação com outros países, baixo. A aceitação da necessidade da guerra nesses países era muito superior à que se verificava em Portugal. De um ponto de vista político, o esforço pedido ao país foi demasiado grande. Até que depois houve uma reacção violenta contra esse sacrifício.

Tendo essa leitura em consideração, faz sentido acreditar que o Governo que mais se ajustou à sensibilidade dos portugueses foi o de Pimenta de Castro [no poder de Janeiro a Maio de 1915, altura em que foi derrubado por um golpe liderado pelos Democráticos]. O general simbolizava a hostilidade dos militares à guerra e, de alguma forma, congregava o país mais conservador, incluindo os católicos e os monárquicos?
É uma boa pergunta. É difícil responder. Por um lado, esse governo não vai a eleições, não mede a sua força eleitoral – embora possamos questionar até que ponto as eleições na Primeira República mostravam a aceitação pública de um governo. Mas eu acho que em grande medida sim, esse é um ponto de vista válido. Quando Manuel de Arriaga [Presidente da República] convida Pimenta de Castro, tem uma ideia do que está a fazer, não dá um tiro no escuro. A postura de Pimenta de Castro, que é depois descrita como uma afrontosa ditadura, não é, quando olhamos com cuidado, muito chocante. Ele está a organizar eleições  é difícil ver esta questão com objectividade total, mas ele diz que quer que sejam tão livres quanto possível, no contexto da República. E, quanto à guerra, diz que Portugal não foi consultado pela Inglaterra quando esta declarou guerra à Alemanha e que se limitará a fazer o que lhe for pedido. É uma visão que se coaduna com grande parte dos portugueses; não diria que se coaduna com a opinião da minoria que se dedicava à política, mas penso que era compreendida pelo país em geral. 

Porque é que, depois de Portugal entrar em guerra, Afonso Costa não fica à frente do governo da União Sagrada e entrega o cargo ao seu rival António José de Almeida, líder do Partido Evolucionista?
Eu acho que é uma forma de mostrar que ele não está preso ao poder, que não tem uma apetência excessiva pelo poder…

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… mas na prática é ele quem manda?
Na prática, Afonso Costa no ministério das Finanças, Augusto Soares no dos Negócios Estrangeiros e Norton de Matos na Guerra são quem detém realmente a força. É Afonso Costa que vai a Londres negociar a participação de Portugal, é Afonso Costa que acode a todas as crises. António José de Almeida, em parte pela sua doença, em parte por fraqueza política clara, cede-lhe o protagonismo. Há só uma questão que os divide, a da amnistia que o Partido Evolucionista queria conceder e que o Partido Democrático limita bastante. Mas é um dos poucos casos que dividem os dois partidos enquanto estão no Governo. 

No seu livro refere que Afonso Costa perde o apoio popular depois do fim da União Sagrada, bem como o de alguns dos seus correligionários. Estava condenado a perder o seu estatuto de figura maior da República no final desse ano, mesmo que não houvesse o golpe sidonista?
Cada vez mais eu encontro sinais de que os dias do Governo de Afonso Costa estavam contados. Já tinha começado uma nova sessão parlamentar poucos dias antes do golpe sidonista e Lisboa fervilhava de boatos sobre o futuro do Governo de Afonso Costa, que era no mínimo sombrio. Ele vinha de Paris, dizia ele, com uma série concessões financeiras e económicas importantes que iriam facilitar a vida do país, mas é uma incógnita se conseguiria nessa sessão debelar a oposição dentro do próprio partido, sobretudo porque ela iria ser encabeçada por deputados democráticos que voltavam também eles de França, da frente de combate, e que iriam falar com autoridade especial. Dizem também alguns relatos que o Governo tinha interiorizado a sua queda. Por exemplo, Norton de Matos dirá mais tarde que toda a gente já sabia que o Governo iria cair. Leote do Rego [oficial da Armada e figura grada do Partido Democrático) dirá a mesma coisa. Não sei se é uma maneira de culpar outrem pelo que aconteceu, sobretudo os rivais dentro do partido, mas havia uma sensação de que os dias do Governo do Afonso Costa estava contados, que ele tinha ficado já sem estrada pela frente.

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O 14.º Governo republicano: Afonso Costa está ao centro, tendo à esquerda o ministro dos Negócios Estrangeiros Augusto Soares e à direita os ministros da Justiça e da Guerra, Alexandre Braga e Norton de Matos

Acredita na versão de Alexandre Braga segundo a qual ele abandona o país, já depois do golpe de Sidónio, para permitir que uma eventual revolta em curso do Partido Democrático pudesse avançar? Ou seja, Costa era já um problema para o partido?
Acho que isso era verdade. Só há duas explicações possíveis para a sua saída do país. Uma é um acordo secreto com Sidónio Pais – Sidónio diz-lhe querer "respeitar a sua integridade física e da sua família", mas que ele tem de se ir embora. É uma hipótese para a qual nunca encontrei provas. E depois há outra explicação, segundo a qual os seus correligionários não contam com ele para encetar a luta contra Sidónio Pais. Que ele tenha saído receando pela sua integridade física, é muito possível. Mas que depois tenha ficando tanto tempo no estrangeiro, que não tenha voltado quando já não havia nenhuma causa pendente contra ele, e sobretudo que nunca tenha dito ou escrito uma palavra contra Sidónio Pais, é notável. E é de estranhar. É contra a natureza de Afonso Costa. Cito várias vezes João Chagas, que não compreende como é possível tal atitude. E isso de facto sugere e muito que é o próprio partido que não conta com ele e que já lho explicou. Que será impossível criar uma grande frente republicana contra Sidónio Pais – que teria de ser liderada pelo Partido Democrático, o maior partido do país  se Afonso Costa continuar à sua frente. E quando o Partido Democrático publica um manifesto, em 1918, dá grande destaque ao facto de não ser da autoria de Afonso Costa, de ele não ter sido consultado ou ouvido, [sublinhando] que parte já de um novo Partido Democrático.

A sua única hipótese de regressar para restaurar a aura política estava dependente de uma negociação bem-sucedida na Conferência de Paz, o que não viria a acontecer.
Em grande medida, sim. Eu acho que Afonso Costa, e nem toda a gente está de acordo, quer voltar. Mas quer voltar não sendo já apenas um líder do Partido Democrático. O que ele quer é regressar a um Partido Republicano Português, a uma coligação que envolva todos os partidos, que seja aceite por todos, e governar com uma estabilidade com a qual nunca tinha podido contar até então. Para conseguir esse apoio, precisa de uma grande vitória diplomática em Paris. Precisa de poder celebrar um grande tratado que venha dar resposta aos problemas do país e justificar a opção intervencionista. Mas isso ele não consegue arrancar. Portugal mal é mencionado no Tratado de Versalhes e, para espanto e grande irritação dele, em Portugal nem se dá grande atenção às negociações. Nos anos de caos político absoluto de 1919 e 1920, o próprio Parlamento demora uma eternidade a ratificar o tratado. São poucas as pessoas que estão a seguir a par e passo as negociações em Paris e a prestação de Afonso Costa. Isso irrita-o bastante. Mas, depois, o Tratado não obedece a essas necessidades de Afonso Costa, e torna-se mais difícil regressar porque ele auto-impôs a condição de só voltar se houvesse um consenso alargado entre todos os partidos republicanos sobre a necessidade de ele liderar o país.   

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