A despedida de Tito

Trata-se de um reencontro em que cada lado terá que dar passos de distância igual. Não precisam de se abraçar, basta que caminhem para o mesmo lado sem se hostilizarem, já será muito.

Uma vez mais, Tito Zagalo veio da costa leste dos EUA passar o Natal com a família que lhe resta em Portugal. Muito crítico, desta vez, com a Europa, o Mundo e Portugal. Então vocês aqui resolveram embarcar na aventura da maioria de esquerda? Quanto tempo vai durar o modelo? Dois anos, dez meses, ou apenas três meses? Pacientemente expliquei o que se tem dito: não há razão para arcos de governação enviesados para a direita, os votantes do PC e Bloco estão arrependidos do apoio que generosamente ofereceram ao derrube do governo Sócrates, o País perdeu valor, independência e energia em quatro anos de destruição moral por expiação de uma culpa inexistente; que as desigualdades sociais e a pobreza se agravaram de modo nunca pensado; que o desemprego sapou as defesas morais dos ativos; que a emigração afugentou os melhores; que era necessário inverter o ciclo do desprezo, da arrogância e da mentira, como acaba de se ver no caso Banif. Referi que as coisas até não estão a correr mal, apesar da geometria variável nas votações difíceis e finalmente que a direita se estava agora a dividir, com o PSD arrependido da má negociação de lugares no Parlamento com que havia calado o CDS e este cansado de se armar em centrista, finalmente regressando à direita das direitas.

Pois é, responde-me Tito, mas já pensaste qual o espaço de manobra de partidos que pouco ou nada acreditam no ideal europeu, no que acontecerá quando nos vierem pedir um batalhão, três navios e oito aviões para integrar forças da Nato, algures, quando uma dúzia de vidas se perder por uma causa que em geral se desconhece? Guardadas as devidas proporções, pode aqui acontecer algo de semelhante com a nossa participação na Grande Guerra: um desproporcionado sacrifício de vidas no desastre de La Lys, uma causa sem raízes na nossa cultura, o uso das nossas tropas para desviar atenções de políticas domésticas, e depois, os massacres por doença no Norte de Moçambique e Sul de Angola, para abicharmos um obscuro lugar à mesa do Tratado de Versalhes, o escasso reconhecimento do sacrifício de milhares de jovens, a pneumónica que eles trouxeram, as lutas intestinas num exército ainda sem corpo e de alma já perdida. Tito estava imparável na sua demonstração. Mas repara, Tito, as primeiras ameaças de greve foram prevenidas, compromissos salariais moderados foram aceites, assumimos ficar abaixo dos 3% no défice de 2015, o programa de incentivo ao consumo dos mais frágeis está a ser executado, a bolsa quase não mexeu, os notadores internacionais apenas avisam e até a Europa, não apenas o FMI, aceita menos severidade no controlo do gasto público. A Itália arroga-se o direito de não cumprir o défice e a Espanha, embrulhada na formação de um governo impossível, parece disposta a bater o pé com mais força a uma Europa meio perdida com a invasão de refugiados da Síria e outras paragens. Não te iludas, responde Tito. Com o mal dos outros bem podemos nós, o pior será mesmo o nosso mal. E ainda me não convenceste de que o modelo adotado seja o melhor. Mas que querias tu, homem de Deus! Que nos conluiássemos com uma direita derrotada nas suas políticas e malfeitorias? Que assistíssemos em silêncio à perda de vidas por continuadas políticas de descuido e regateio de pagamento decente nas urgências hospitalares? Que afundássemos ainda mais o País, vendendo a TAP, os transportes coletivos, as águas, a Caixa, a banca, os hospitais e clínicas, até as universidades, passando a trabalhar para os Chineses e Angolanos que aqui instalam feitorias como as potências ocidentais em Xangai, cem atrás? Não acreditas, Tito Amigo, no despertar de um povo agredido, agora com sinais de reencontro e confiança? Quando em cada semana se descobre nova omissão, erro grave ou mesmo mentira do governo anterior? Quando estamos na véspera de despejar o ideólogo do pragmatismo, um inquilino que se tornou inconveniente, indesejado, hostil, não apenas incómodo, para acolhermos uma nova presidência que una em vez de desunir?

Sabes, Tito, podem parecer mitos de esquerda, idealismos não sustentados, sonhos de velhos frustrados. Mas se bem olhares, trata-se de um reencontro em que cada lado terá que dar passos de distância igual. Não precisam de se abraçar, basta que caminhem para o mesmo lado sem se hostilizarem, já será muito.

Pois é, do lado de lá do Atlântico posso estar a ver-vos com lentes de vista cansada, também eu gostaria que tivesses razão. A ver vamos.

Amor impossível. Título romântico, kitch deliberado, para um belo filme de António-Pedro Vasconcelos. Acusado de fazer filmes para o grande público e de tramas psicológicas complexas e raras, preso por ter cão e por não o ter, desta vez parece que críticos nacionais terão encontrado no filme alguma coisa de bom. Eu por mim gostei. De uma juventude e seus problemas que em geral desconhecemos, de uma fantástica direção de atores, onde a mistura – em que o realizador é mestre - entre consagrados e ídolos de telenovelas em combinação feliz, dos cenários do quotidiano de uma bela cidade de província (Viseu, a minha terra, enche-me de orgulho a sua beleza). Gostei sobretudo do acordar da sociedade para lá dos noticiários, mesmo que o despertar tenha que ser violento. Parabéns, meu Amigo, homem de causas e artista da palavra com imagem.

Despedida. Encerro com esta crónica uma colaboração de mais de cinco anos com o Público. Agradeço a Bárbara Reis o convite, ao saudoso Miguel Gaspar a oportunidade, a Miguel Vieira a recomendação, a Nuno Pacheco a edição sempre cuidada, a João Ferreira da Cruz, a colaboração que se foi tornando indispensável e aos leitores a fidelidade e a tolerância. Agradeço ainda a Augusto (Tito) Zagalo, professor numa das mais prestigiadas universidades da costa leste dos EUA, a sua ocasional crítica em amigável contraponto.

Professor catedrático reformado

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