O júbilo é Bach

Uma Oratória de Natal bem dirigida, com alguns medos que a música de Bach e alguns excelentes solistas fizeram ultrapassar.

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Johann Sebastian Bach

O Centro Cultural de Belém teve uma enchente natalícia para assistir à Oratória de Natal, de Bach. O público era tanto que levou algum tempo a entrar - o concerto começou mesmo cerca de 15 minutos depois do previsto. O maestro argentino fez uma pequena introdução de boas-vindas, explicando o que se iria ouvir a seguir e alertando os "agentes culturais" para a necessidade de preservar projectos musicais e apoiar intérpretes portugueses como esta orquestra, este coro, estes solistas.

Depois de um aplauso generoso a estas palavras, arrancaram coro e orquestra com "Exultai, rejubilai! Louvai estes dias", o primeiro número desta obra magnífica. Arranque tão entusiástico que saiu quase atabalhoado. Nada de comprometedor: o Evangelista pegou depois muito bem na narrativa e Maria anunciou o nascimento do seu filho. Eram os dois primeiros solistas a entrar em palco, vindos de fora: Marco Alves dos Santos, que esteve impecável durante toda a oratória, no importante papel do Evangelista e mais tarde na ária de Herodes. Ela, Maria, era Maria Luísa de Freitas, mezzo-soprano que cantou muito bem, embora num estilo nada "barroco", voz tensa e dramática, a fazer lembrar muito mais a ópera dos séculos seguintes a Bach. Coisa que pode fazer-se, apesar dos desequilíbrios de conjunto que isso possa gerar: afinal Maria (a personagem) também é uma mulher especial. E a diversidade é saudável.

No programa estavam três das seis cantatas que compõem esta obra. Fizeram da Oratória de Natal um monumento, mas para Bach tratava-se apenas de fazer o melhor possível a tarefa do dia, mesmo sendo para uma quadra especial. Na primeira cantata (o nascimento de Jesus, precisamente) houve ainda lugar para uma ária que não correu bem a João Fernandes, que pareceu um pouco nervoso e com dificuldades em projectar a voz. Mais tarde redimiu-se, com bons momentos vocais, incluindo o dueto "libertador" com Ana Quintans, soprano que teve poucas ocasiões para brilhar, mas não deixou de o fazer na sua ária da última cantata.

A Orquestra Metropolitana de Lisboa fez um excelente trabalho com a direcção de Alarcón, que não perdeu o fio da música e fez opções interessantes de tempo, deixando os corais ressoarem sem precipitações. E o coro Lisboa Cantat aguentou-se bem, apesar de alguns medos iniciais (sopranos temendo os agudos, por exemplo) e algumas inseguranças. Mas mostrou que é capaz do melhor, no emocionante coral "Junto ao vosso presépio".

Jesus é menino, acabadinho de nascer, mas já é capaz de grandes feitos. E na música de Bach há júbilo, terror e amor, apesar de uma respeitosa contenção. Mas encontra-se ali também, e sobretudo, o trabalho do dedicado artesão. Artesão genial, capaz de fazer coisas grandes em pequenos detalhes. O mais impressionante de toda esta oratória, perdoem-me os excelentes cantores e o coro entusiástico, passou-se em pequenos momentos sublimes dos solistas da orquestra. Dois exemplos apenas: quando Ana Pereira acompanhou de forma excepcional, com o seu violino, a ária para mezzo-soprano, subitamente projectando uma luz ("milagre divino", dizia o texto) sobre toda a cantata; ou quando o trompete de Sérgio Charrinho, numa passagem nada fácil, nos anunciou musicalmente uma hipótese de felicidade. Tão esperançoso como um trompete de Beethoven um século depois, mas doutra maneira - aqui é só alegria, nada de revolta. O júbilo é Bach e a sua felicidade tão simples, que é apenas a de fazer música para a celebração do dia-a-dia. Nesses momentos sim, o menino nasceu.

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