Os jornais das nossas vidas

Se os jornais em papel estão condenados a desaparecer, isso significa que as cidades como as conhecemos serão também um pouco diferentes.

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Lembro-me muito bem do som, um baque surdo, do jornal a aterrar no tapete à porta de nossa casa. Era entregue todos os dias de manhã cedo pela “senhora dos jornais”. Eu ouvia os ruídos tão familiares que o elevador fazia e pelos quais confirmava que já tinha passado o terceiro andar e que estava a chegar ao quarto, o nosso. As portas metálicas abriam-se e o jornal voava um metro até à porta. Ainda de pijama, eu entreabria a porta e puxava-o para dentro.

O meu avô gostava de o ler sentado numa cadeira junto à janela. Era o Diário de Notícias que recebíamos naquele tempo. E era (ainda) muito grande, no seu formato broadsheet. Tínhamos de o dobrar para conseguir ler bem uma notícia. Para mim, que era pequena, o jornal parecia enorme e perdia-me no meio daquelas páginas, mas achava que me dava um ar importante procurar uma notícia.

Voltei a ter essa sensação muitos anos depois, quando passei algumas semanas em Nova Iorque numa casa onde se recebia o The New York Times à porta. Era um monumento de jornal, que me ocupava toda a mão quando lhe pegava para o trazer para dentro. E, claro, dava para uma manhã inteira de leitura, enquanto se enchia de migalhas e rodelas molhadas nos sítios onde ia pousando a caneca do café.

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Este não é um texto de nostalgia do papel. É apenas um exercício de olhar para o passado e recordar de que forma os jornais estiveram sempre nas nossas vidas de maneiras que já não se repetem. E, porque esta é uma crónica urbana, isto tem que ver com a cidade de tantas maneiras. Durante quanto tempo mais teremos quiosques de jornais? (o João Catarino, quando enviou a ilustração, escreveu: “Reparei que esta banca de jornais, para além de tudo, também ainda vende jornais”).

Sempre houve jornais por todo o lado na minha vida — e ainda há, numa certa casa, pilhas e pilhas deles a ficar amarelos enquanto discutimos se somos, ou não, a hemeroteca nacional. Era preciso afastá-los (e eles enrolavam-se nos livros) quando entrava para o banco de trás do carro do meu pai. Às vezes, quando tinha de entrar à pressa, sentava-me em cima deles, amachucando-os e tentando, desajeitadamente, empurrá-los para o lado.

Havia os portugueses, claro, mas sempre os franceses também, o Le Monde, o Libération, o Le Monde Diplomatique. E as revistas, muitas também. Sempre notícias e textos e histórias e fotografias e pessoas que pensavam — e o mundo a (des)organizar-se no cada vez mais confuso banco de trás de um carro.

Não os lia por ordem, agarrava num ao acaso — o Libé vencia muitas vezes, pelas capas, claro — e descobria coisas que não sabia. Às vezes descobria coisas sobre coisas que não imaginava que existiam. E fazia perguntas (tinha sorte porque o meu pai gostava de responder a perguntas, para além de gostar de assobiar durante as viagens de carro).

Existia na minha rua uma papelaria à porta da qual nós, miúdos, nos reuníamos ao final da tarde quando vínhamos da escola. No meio dos jornais e das revistas pendurados à porta, brincávamos e crescemos e mais tarde tínhamos conversas que achávamos muito inteligentes e apaixonávamo-nos e acreditávamos que tudo o que importava e que importaria para sempre estava ali.

E voltávamos para casa para ouvir música no gira-discos e para gravar cassetes especiais e tentar, uma vez mais, ligar para o Quando o Telefone Toca, dizer a frase e pedir o disco — tínhamos aquele truque de discar número a número e segurar o último até ao momento em que eles começavam a receber as chamadas e só então o largar. Nunca resultou. Estava sempre interrompido. E as séries na televisão começavam à hora certa, por isso quando tocava a música do genérico voávamos pelo corredor para ocupar o nosso lugar.

No dia seguinte, logo de manhã, ouvíamos o elevador a subir e sabíamos que aquele sim, ia ser o dia mais importante de sempre porque tudo podia acontecer. A porta do elevador abria-se, chiando, a senhora dos jornais tirava um — estavam encaixados uns nos outros numa pesada sacola plastificada — e zuuuttt, ele voava um metro, aterrando à nossa porta com um baque surdo.

No outro dia falei sobre jornalismo para uma audiência de estudantes universitários. Alguns deles estavam sentados com computadores à frente. Perguntei-lhes se costumavam ler jornais, fizeram sorrisos envergonhados e responderam que liam “às vezes, na Internet”. Não me preocupou muito “a Internet”, preocupou-me mais o “às vezes”. Ouviram-me. No final não fizeram perguntas.

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