Sinceridade à esquerda

É essencial forçar quem governa a submeter-se à negociação com aqueles que representam interesses diferentes dos seus.

Debate sobre o Estado da Nação na Assembleia da República. Paulo Portas, depois de anos nas vestes de ministro (mais ou menos irrevogável), decidiu voltar a vestir-se de diretor do Independente – perdão, de deputado da oposição – e quis dar conselhos a António Costa a propósito das greves marcadas pelos estivadores do Porto de Lisboa: “Não pode pedir ali aos camaradas da Intersindical para acabarem com o sindicalismo superagressivo?” Nem vale a pena discutir se Portas sabe que o sindicato que a convocou não é da CGTP porque o seu objetivo é sempre o de culpabilizar quem, no mundo do trabalho, se levanta para defender direitos. A novidade reside, sim, no facto de um Primeiro-Ministro socialista ter entendido a pergunta, não simplesmente como uma provocação, mas como “um insulto à Intersindical, ao PCP e ao Governo”. Mais: que tenha estendido ao universo sindical a tese de que não deve haver excluídos entre aqueles que configuram a representação da vontade democrática: “não aceito que a Concertação Social se faça com as confederações patronais e com uma [só] confederação sindical”, isto é, com a UGT e não com a CGTP (PÚBLICO, 17.12.2015).

Inédita num líder socialista, a reação de Costa, líder do governo mais parlamentar (porque assumidamente dependente da negociação política e da correlação de forças no Parlamento) desde 1976, pode levantar para muitos a questão da sua sinceridade, decorrente da memória de mais de 40 anos de más relações entre PS e PCP. O fosso que à esquerda, desde 1975, separou o PS de todas as forças à sua esquerda, especialmente o PCP, serviu sempre à direita para descrever o PS-barreira-ao-comunismo como “esteio da democracia” apenas porque se havia constituído em tal barreira, e não, como o PS gosta de se descrever, como o único partido capaz de conseguir acordos à direita e à esquerda, como os que fez para a aprovação da Constituição em 1976. O que caraterizava o PS até este outono – com a exceção de Lisboa, 1989-2001 – era precisamente o facto de prescindir de metade daquela sua capacidade: acordos à direita nas questões fundamentais (revisão do modelo económico da Constituição, integração europeia, política externa), mas indisponibilidade para encontrar convergências à esquerda. Durante os dez anos de cavaquismo (1985-95), ou quando a direita regressou ao poder, neste século, com os três governos (Durão, Santana, Passos) que mais radicalmente atacaram toda e qualquer aparência de democracia social que herdámos do 25 de Abril, o PS esteve fundamentalmente ausente das mobilizações (greves gerais, manifestações, movimentos de opinião) que se organizaram, não somente porque nunca foram de iniciativa sua, mas sobretudo porque a sua foi sempre uma cultura de partido de poder, responsável, que se exprimia no Parlamento e nos media, mas não na rua, raramente nas iniciativas cidadãs.

Depois das eleições, ao fim de 4,5 anos de governo Passos, com uma tensão e ansiedade sem precedentes entre os portugueses que vivem do seu salário ou da sua pensão, o PS verificou que, se seguisse esta velha regra de não negociar à esquerda, ficaria limitado à escolha de ter apoiar aquela mesma direita e comportar-se daquela maneira "altamente responsável” que recomendava Francisco Assis (Jornal de Negócios, 14.10.2015). Como alternativa restava-lhe provocar “o fim de um tabu de há muitos anos”. A surpresa e a tensão política que a direita introduziu gritando contra as negociações à esquerda explicou-a Costa ao dizer que PSD e CDS “porventura confiaram nesse tabu e confiaram na sorte” (Costa, PÚBLICO, 3.12.2015) de que o PS não empreendesse este caminho.

Quebrada a regra que impunha que o PS prolongasse indefinidamente a lógica de 1975, há quem se pergunte até que ponto esta viragem seja sincera, quer da parte do PS, quer da parte dos seus parceiros à esquerda. Ora a (in)sinceridade dos atores políticos é uma daquelas discussões que, colocada num campo estritamente moral/filosófico, foge ao essencial: importante é avaliar na prática o que fazem aqueles que participam nos processos de decisão. Não sei se os comunistas e os bloquistas acham sincera a mudança de atitude dos socialistas relativamente a eles, e vice-versa. Sei que a mudança só será real enquanto o cumprimento daqueles acordos se verificar e contribuir para reverter efetivamente o empobrecimento, a depressão social, o desrespeito pelos direitos.

Costa reconheceu durante a discussão do programa do seu Governo (que é do PS, mas não do PCP ou do BE) que socialistas, comunistas e bloquistas continuam a divergir sobre a UE, por exemplo, mas assegurou (direita de novo escandalizada!) que “o que o PCP não está disponível para apoiar é o que nós também não estamos disponíveis para propor.” É a isto que a direita (e socialistas como Assis, Álvaro Beleza ou Sérgio Sousa Pinto) chama estar “refém da extrema-esquerda” (a inflação semântica diz tudo). O disparate parece-me deliberado. A questão é simplesmente a de reconhecer os limites da capacidade de tomada de decisões unilaterais, a que se habituaram os governos maioritários. Neste novo quadro, como pode assegurar a sua própria viabilidade um governo que depende de apoios políticos exteriores à sua área política? Garantindo uma relação de confiança entre aqueles cujo apoio é necessário assegurar. Basta que seja verificável a afirmação “nós sabemos que podemos confiar naqueles com quem criámos esta solução de Governo” (Costa, PÚBLICO, 3.12.2015).

Mas não é esta a essência do Estado de Direito? Ou da própria democracia? Não depende a sua qualidade do grau de confiança nas relações jurídicas e sociais? Todos estes anos, desde 2010, de revogação unilateral, por parte do poder político e dos poderes económicos, de contratos, pensões, salários, prestações, direitos, não produziram uma perda de confiança na norma escrita, na palavra do poder? Esta nova experiência política, que não resolverá, seguramente, todos ou sequer a maioria dos problemas económicos e sociais, pode ao menos contribuir para fazer recuar este presidencialismo do Primeiro-Ministro que Cavaco inaugurou em 1985 e que todos os seus sucessores (Guterres menos que os demais) quiseram imitar. Esta arrogância de quem acusa sempre o mexilhão de resistir à onda sem se deixar esmagar. É essencial forçar quem governa a submeter-se à negociação com aqueles que representam interesses diferentes dos seus; com quem representa aqueles que, antes de se verem obrigados a cumprir, têm o direito de serem ouvidos. E de resistir.

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